Tudo era barulhento. Haviam pilhas de paus que logo estariam estalando nos cantos das casas com as fogueiras acesas, crianças ensaiando na escola para uma apresentação, discutindo sobre quem seria o seu par na quadrilha e pais se preocupando com os bolos de macaxeira, mingau de milho e maniçoba.
Todos estavam muito ocupados com os preparativos da grandiosa festinha junina. Mal perceberam o grupo de pessoas que havia chegado na comunidade aquela tarde. Digo mal porque havia sempre aqueles indivíduos mais atentos, que o povo insistia em chamar de “velhas fofoqueiras”, e dentre elas estava Therezinha, que possuía a incrível capacidade de ser mãe de 5, avó de 12, dona de casa, membro participativo de todas as atividades da comunidade e a mulher mais bem informada daquele lugar.
Ela logo falou com Zé do perfume, como era conhecido o dono do comércio mais procurado da comunidade. Zé informou que a Julinha, filha do Pedro Peixeiro, estava toda emperiquitada porque participaria de um teste pra ir na capital tirar fotos para uma marca de cosméticos muito conhecida.
– Ora, mas desde quando eles vêm até aqui atrás de gente pra fazer essas coisas. Na capital tem um monte de mulher bem afeiçoada pra isso. – Disse Therezinha, intrigada.
– Foi o que eu disse, mas ela falou que aqui tinha beleza de verdade, que as meninas da capital eram falsificadas.
– Mas quando… – Therezinha ainda não engolia aquela história. Então procurou a Julinha, que estava reunida com várias outras meninas dando risadinhas típicas das crianças daquela idade.
– JULIANA! – Chamou a senhorinha. – Venha cá.
A menina se sobressaltou e repentinamente as amigas foram saindo de fininho para não enfrentar a velha – Do-dona Thereza! O que eu fiz dessa vez? Juro que não fui eu!
Therezinha bufou. – Deixe disso menina, venha cá que eu quero te perguntar uma coisa.
– Sendo assim… pode perguntar. – respondeu a adolescente.
– Que conversa é essa de teste pra fazer propaganda pra marca de perfume?
– Ah! Não é legal? Se eu ganhar posso ir pra Capital. As minhas amigas falaram que eu que vou ganhar, com certeza, por que elas me acham a mais bonita daqui da comunidade.
Therezinha bufou mais uma vez. – Ah se tu fosses minha neta, ia aprender a ser humilde.
– Devo ter sido uma boa pessoa na outra vida pra Deus não ter me castigado assim. – sussurrou a menina em um tom que sabia que a velha, meio surda como era, não poderia ouvir.
– Me diga onde vai ser esse teste. – O tom de Therezinha era imperativo, sendo uma das anciãs da comunidade, a senhorinha havia se acostumado a mandar em todos pois sabia que ali os mais novos sempre ouviam os mais velhos.
– A senhora não tá velha demais pra querer ser modelo? Não é mais tão bonita, dona Thereza. – A menina brincou e a senhora ficou atordoada com o disparate.
– Mas olha isso! Que desavergonhada! Pois eu era muito mais bonita que tu quando tinha tua idade. Deixe de conversa e me leve até esse pessoal, rápido!
Julinha se agarrou aos braços de Thereza e a levou até uma barraca que estava armada no campinho em que as crianças costumavam jogar bola. No caminho encontrou professora Patrícia sorrindo bobamente com os braços dados ao delegado Daniel que usava uma blusa quadriculada e chapéu de palha. A senhora logo se apressou para o lado dos dois após alguns protestos da adolescente ao seu lado.
– É providência divina encontrar vocês dois aqui. – Disse sem cumprimentar, como costumava fazer.
– Boa tarde, Dona Therezinha. Como a senhora está? – perguntou Daniel.
– Boa tarde, rapaz. Estou bem, mas minhas pernas estão doloridas de tanto andar. – reclamou.
– A senhora deveria descansar – Falou Patrícia em um tom preocupado, se desvencilhando de Daniel e indo checar se a idosa precisava de algo.
– Vocês dois depois que começaram a namorar estão vivendo no mundo da lua. Jovens e suas cabeças apaixonadas! – Therezinha reclamou, deixando o casal com os rostos vermelhos de vergonha.
– Vocês estão namorando?! – perguntou Julinha com um ar chocado.
– Tem muito a aprender, criança. Observe os sinais. – disse a velha.
– Vou andar mais com a senhora – a menina falou decidida.
– Sem mais demora, quero que os dois venham comigo até a tenda daqueles desconhecidos que vieram fazer testes nas crianças.
– Como assim?! – exclamou Patrícia em choque enquanto Daniel franzia o cenho.
– Eles são agenciadores, Dona Thereza – explicou Julinha com condescendência.
– Que seja. Quero que vocês saibam se são o que dizem ser. Vi na TV que muitos se passam por agenciadores enquanto buscam raptar meninas e meninos para explorar sexualmente.
Julinha ficou assustada com a possibilidade de as pessoas simpáticas que conheceu serem, na verdade, gente ruim. Daniel concordou enfaticamente e Patrícia demonstrou-se tão preocupada quanto Therezinha.
Eles foram juntos até a barraca dos agenciadores, Julinha ficou para trás já que os adultos tinham medo de envolvê-la em algo sério. Lá estavam dois homens e três mulheres, bem vestidos e com óculos escuros. Pareciam ser gente séria.
– Os testes começarão apenas às 17h. Inscrevam seus filhos na mesa ao lado. – disse o homem sem olhar os três no rosto.
Daniel limpou a garganta e o homem levantou os olhos. – Pois não?
– O senhor poderia me falar o CNPJ da empresa e me mostrar alguns de seus trabalhos anteriores? Também gostaria do endereço de vocês, por precaução.
– E o senhor é…?
– Ele é delegado de polícia – disse Therezinha. – e o senhor é quem?
O homem parecia desconfortável e se apresentou como Roberto. Mostrou documentos e tudo o que Daniel pediu. O delegado informou que iria pesquisar mais sobre o documento e gostaria que eles comparecessem a escola onde seriam supervisionados por ele e os professores.
– Cuidamos bem das nossas crianças aqui – informou Patrícia.
– Roberto, precisamos de você aqui por um instante – pediu uma das mulheres e o homem a acompanhou com um sorriso simpático.
– Eles são pilantras- sussurrou Therezinha.
Os eventos seguintes aconteceram rapidamente. Daniel ligou para a delegacia e pediu para que pesquisassem o nome do homem e o CNPJ da empresa. Acabou descobrindo que ambos eram falsos. Calmamente ele pediu por duas viaturas.
– Paty, preciso que você ligue para o Lúcio. Ele está aqui com mais dois policiais porque pediu folga. Você o chama e leva Therezinha com você, tá bem?
– Você vai ficar sozinho? – disse Patrícia assustada enquanto olhava para o grupo reunido a uns 10 metros de distância.
– É melhor, caso eles reajam. Não sabemos se eles são bandidos. Agora me dê um beijo e sorria. Precisa disfarçar enquanto sai.
Patrícia ficou na ponta dos pés e beijou Daniel, sorriu e acenou para o grupo. – Trarei um bolo de macaxeira pra vocês. As crianças estão ansiosas para vir aqui!
As duas mulheres saíram e só voltaram a ver Daniel no fim da noite. Depois de prender os membros de uma quadrilha que realizava exploração sexual de crianças e se passavam por agentes de empresas famosas.
– Obrigada, Therezinha. Sem o seu faro coisas ruins poderiam ter acontecido. – Ele disse.
– Você seria uma ótima delegada – Patrícia gracejou e piscou para senhora.
O assunto da noite foi a velhinha que desmascarou uma importante quadrilha e toda a comunidade pareceu muito orgulhosa. Therezinha ficou envergonhada. Quase nunca recebia essa atenção toda, mas acima de tudo estava assustada.
Preferia que fosse só uma paranoia sua e que aquela comunidade ainda fosse segura para todos, porém talvez nunca tenha sido. Ela tinha a fantasiosa ideia de que antes tudo era melhor, mas se lembrava de que na infância e adolescência as coisas não eram boas também.
Por fim, Therezinha se deu conta de quem havia mudado era ela, que agora via o mundo de uma forma diferente. No fim das contas estava satisfeita que esta sua visão tenha salvado a pequena e bela Julinha e as outras crianças da comunidade. Quer isso a assustasse um pouco ou não, era preferível lidar com um mundo real do que com a ideia fictícia de que tudo era bom e assim colocar a sua família, sua casa e seus amigos em perigo.
Nicoly Araújo e Diego Martins