A confissão

Uma professora não tem folgas. A vida de Patrícia era lecionar. Ela mal sabia fazer outra coisa que não tivesse o mínimo envolvimento com os alunos. Por isso era uma grande tortura ter de fazer os preparativos para o próprio casamento.

Para a sua sorte ela era uma professora amada. Seus alunos davam ideias e os pais estavam mais do que ansiosos em ajudar com os preparativos. Ribeirinha havia colocado na cabeça que o casamento seria na beira do rio, ao pôr-do-sol. Dizia que seria romântico ter um arco com flores silvestres que dava para o laranja e rosa refletidos no rio pelo céu da tarde.

Patrícia amou a ideia e o vestido que Rai desenhou para ela. Maria e Therezinha se comprometeram a costurar. Ela se casaria durante as férias escolares. Assim teria um pouco de paz e não comprometeria suas tarefas.

Faltando um mês e meio para a festa Patrícia achou que enlouqueceria. Havia as avaliações finais e os relatórios que deveria fazer para a secretaria de educação sobre o desenvolvimento de cada aluno. A professora não sabia mais o que era uma noite de sono, pois quando não estava fazendo as provas ou corrigindo os trabalhos, estava vendo arranjos de flores e revisando a lista de convidados.

Os moradores da comunidade se revezavam para cozinhar as refeições da professora e Daniel participava ativamente de todas as decisões. Ainda deveriam imprimir os convites e entregar a todos naquele espaço curto de tempo.

Tudo estava um caos na mente de Patrícia. Um caos suficiente para que ela deixasse de notar certas coisas.

– Rafael. – chamou automaticamente.

– Presente! – respondeu o aluno.

– Raiane – seguiu com a lista de chamada.

– Faltou – respondeu a classe.

Patrícia levantou as sobrancelhas para a lista de presença. Nela conseguia visualizar a quantidade de faltas de Rai. Duas vezes naquela semana e mais uma na semana anterior. A professora respirou fundo e perguntou à classe se sabiam se Raiane estava doente ou se ela avisou sobre algum compromisso e recebeu uma resposta negativa de todos, menos de Ribeirinha, que ficou calada olhando com extremo interesse para o chão. A professora fez uma nota mental sobre perguntar se havia algo de errado com as faltas à Ribeirinha, que era a melhor amiga de Raiane.

A verdade é que Rai continuava com um comportamento obscuro na sala de aula. Não brigava ou era agressiva. Apenas não se misturava e não era muito de falar com os colegas, com exceção de Ribeirinha.

Mas àquela altura já faziam meses desde que Patrícia procurou o conselho tutelar e só se lembrava vagamente da menina tagarela e risonha que Raiane era. Para o resto da turma ela não estava agindo diferente. Ela sempre foi assim quieta.

Patrícia apertou o polegar na têmpora e continuou a fazer a chamada.

No fim da aula ela lembrou que deveria ir na cidade com Daniel pegar os convites e, como a viagem era longa e ela não havia terminado de preencher o último relatório, não pôde esperar mais nenhum segundo na sala. Lembrou a si mesma de procurar Ribeirinha na segunda, pois após as provas de língua portuguesa estaria mais tranquila.

Saiu apressada e escreveu uma nota de “importante! Rai está faltando outra vez!” em sua agenda.

Na segunda-feira a prova foi aplicada e Raiane não apareceu. A mãe mandou um bilhete por Ribeirinha justificando que a filha não estava se sentindo bem, pois sofria fortes dores de barriga. Em meio a confusão que era a mente de Patrícia, uma luz amarela acendeu.

Meses atrás o conselho tutelar acompanhou Rai. A menina não tinha sinais de agressão física e estava um pouco abaixo do peso esperado. Segundo o médico ela era um pouco anêmica e por conta disso passou algumas vitaminas.

Ela foi levada à uma assistente social que disse que a menina parecia bem e afirmou que aparentava estresse, mas as buscas se encerraram depois que a criança ganhou um pouco mais de peso e começou a ir às aulas assiduamente. As avaliações daquele semestre seriam enviadas para que fosse apurado o desenvolvimento da criança.

Tudo parecia bem e as coisas aparentavam estar voltando ao normal. As suspeitas de Patrícia acerca de violência física nunca foram comprovadas e nem possuíam qualquer outra sustentação. Por conta disso a professora silenciou seus protestos mentais. Tudo estava bem afinal.

Porém, ao fim da prova, Ribeirinha esperou que a sala de aula esvaziasse e falou com os amigos que precisava falar com a professora. Patrícia sorriu para ela.

– Eu esperava falar com você também, mas me diga primeiro o que deseja. – disse a professora.

– É… é sobre a Rai. – ela olhou para os cantos da sala, como se estivesse esperando que alguém surgisse dali e as interrompesse.

– Ah… eu também ia te perguntar sobre ela. O que aconteceu?

– Ela está doente, já faz um tempo, mas acho que a senhora percebeu – respondeu a criança.

Patrícia se ajeitou na cadeira, franzindo o cenho com preocupação. – O que houve? Ela está muito mal?

– Acho que é a fazenda em que a mãe dela trabalha – Ribeirinha estava inquieta enquanto falava. Seus olhos começaram a encher de lágrimas.

– Como assim, meu anjo?

– Eu não acho que seja a fazenda. Acho que é o dono. O fazendeiro está adoecendo ela.

– Ribeirinha… isso é muito sério, por que você acha isso? – Patrícia tentou alcançar as mãos trêmulas da criança, mas a menina se afastou.

– Eu sei disso, professora. Mas eu não posso falar nada. A Rai me pediu para jurar que não falaria nada. Por favor, não diga que fui eu, mas só não deixe que ele se aproxime dela.

Patrícia sentiu que o chão em que pisava era vidro e que esse vidro estava se despedaçando sob seus pés. Que estava caindo de uma altura gigantesca e não sabia quanto tempo duraria a queda. – Ribeirinha…- os olhos da professora marejaram enquanto via sua aluna segurar o choro.

– Eu nunca trairia a Rai, eu juro. Mas fui eu quem falei o segredo da minha prima Maria e a minha família ficou triste desde então. Eu sei que a minha família ainda está triste e eu não quero que com a Rai seja assim. Mas ela é mais nova e eu preciso proteger ela. Não posso deixar que fique mais doente. Eu não trairia a minha melhor amiga se não fosse o melhor.

Àquela altura Ribeirinha estava aos prantos. As lágrimas escorriam facilmente pelo rosto e os soluços faziam seu peito saltar. Patrícia abraçou a criança e acariciou seus cabelos. Disse a todo o momento que as coisas ficariam bem e que a criança fez o certo ao contá-la.

Depois de alguns minutos a professora pegou um copo com água e açúcar para a criança e pediu para que ficasse sentada enquanto fazia uma ligação importante.

Pegou o celular e discou 100.

– Boa tarde, me chamo Patrícia Sousa e sou professora na escola de ensino fundamental. É sobre uma aluna minha. O nome dela é Raiane Oliveira…

***

 

Patrícia estava sentada na calçada da escola. Daniel estava com um braço ao redor de sua cintura e tentava acalmá-la.

– Eu sinto que é minha culpa – começou a dizer.

– Amor… você fez tudo o que podia. – falou enquanto limpava uma lágrima que escorria lentamente pelo rosto da noiva.

Patrícia balançou a cabeça negativamente. – Há alguns meses ela disse que eu era a pessoa que ela mais confiava no mundo. Se eu tivesse insistido…

– Paty – Daniel falou.

– E o casamento me deixou tão ocupada que eu não notei as faltas.

– Você não pode se culpar. Paty, você fez o que sabia que poderia fazer naquele momento. Você é a pessoa mais amável e dedicada a esses alunos. Você sentiu que havia algo de errado antes de todos.

– E não fiz nada! – retrucou ela.

– Você falou com o conselho tutelar, amor. Eles poderiam ter investigado melhor, poderiam ter indicado um acompanhamento psicológico… Eu poderia ter olhado mais atentamente também. Afinal eu sou policial e também estava a par do caso. Amor, todos poderíamos ter feito mais. Não pode se culpar sem culpar a todos nós, porque funcionamos juntos. Professores, delegados, assistentes sociais, enfermeiros e juízes.

Patrícia curvou o corpo e escondeu o rosto nas mãos espalmadas. Ela sabia que ele tinha razão e ficar ali culpando o sistema e a si mesma não era a saída. Havia uma criança que ela adorava do fundo do seu coração que precisaria de sua ajuda dali pra frente e haveria muitas outras que precisariam da atenção dela. Foi por isso que Patrícia respirou fundo e decidiu voltar a luta.

– Nicoly Araújo e Diego Martins

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


The reCAPTCHA verification period has expired. Please reload the page.

Rolar para cima
Pular para o conteúdo