Rede de atendimento

A primeira reunião da rede de atendimento na comunidade da Ribeirinha aconteceu na escolinha, onde todas as demais coisas costumavam acontecer.

Lá estavam as duas professoras da pequena escola, juntamente com Edileusa, a caricata diretora que estava com uma carranca séria perto da entrada de uma das salas de aula. A assistente social chegou atrasada, mas ninguém reclamou pois ela vinha do CREAS que ficava longe da comunidade.

Daniel apareceu junto com uma amiga delegada e foi cumprimentar Patrícia, que não parava quieta em nenhum lugar, pois organizava os assentos dos participantes que se interessaram em participar da reunião.

No total eram 20 pessoas, contando com alguns membros do conselho tutelar. De todos os importantes profissionais ali, Patrícia foi a escolhida para conduzir a reunião.

– Estamos aqui pois na comunidade descobrimos quatro casos de violência sexual cometidos contra crianças só em novembro do ano passado. O abusador era um senhor que todos conhecíamos e que estava acima de qualquer suspeita.

Therezinha ouvia atentamente. Era a pessoa mais ativa em todas as reuniões da comunidade. Alguns poderiam até alegar que ela era fofoqueira e adorava comentar como fulano ou ciclano não davam exemplo, mas no fundo era puro interesse em saber sempre das coisas que interferiam na sua vida, na de seus filhos e netos.

A senhora lembrou-se de Maria. O caso da neta foi o primeiro a ser descoberto e denunciado. Outros três foram revelados após o dela. Eram outros três filhos, irmãos e netos que tinham a sua vida marcada dolorosamente pela violência sexual.

As lembranças da idosa foram até a sua infância com seus cinco irmãos e seu pai bêbado. Ela lembrou de uma noite em que ele surgiu ao lado de sua rede, mas eram décadas atrás, nem ela mesma sabia, ou queria reconhecer, se aquela lembrança de fato existia ou se as mãos pegajosas e o hálito forte de álcool que assombravam vez ou outra seus sonhos eram reais.

– Mês que vem será maio e esse é um mês importante, assim como o outubro rosa e o novembro azul, pois é o momento em que se intensificam as ações de enfrentamento ao abuso e à exploração sexual cometida contra crianças e adolescentes. Nós da escola pensamos que é bom aproveitarmos essa oportunidade para divulgar uma campanha contra este tipo de violência e, assim, prevenir a ocorrência de novos casos. – continuou a professora.

Ninguém ali precisava explicar a importância daquela campanha já que três das cinco famílias presentes à reunião haviam enfrentado uma situação de abuso no ano anterior.

Todos estavam dispostos a ajudar da maneira que podiam. Patrícia sugeriu uma reunião com os pais das crianças que frequentavam a escola e lições sobre educação sexual pelo menos uma vez por semana.

A representante do CREAS comprometeu-se com a produção de cartazes para serem colocados nos lugares mais frequentados da comunidade destacando a importância de denunciar. Daniel ficou de solicitar ao seu amigo mais das cartilhas com o passo a passo para o atendimento dos casos de violência sexual. O Conselheiro Tutelar disponibilizou-se para entregar as cartilhas nas casas em que visitava juntamente com outros colegas. Os membros da comunidade comprometeram-se a convidar amigos, vizinhos e familiares para as atividades realizadas na escola.

E foi assim que se findou a primeira reunião daquela pequena rede de atendimento. As decisões ali tomadas foram importantes durante aquele mês, pois quando viam os cartazes do CREAS ou liam a cartilha que Daniel conseguiu, algumas crianças começaram a falar “não” para toques de adultos que as deixavam desconfortáveis e alguns adultos começaram a conversar entre si sobre situações que sofreram, ou que algum parente sofreu, sem que soubesse que aquilo era de fato crime.

Therezinha saiu da reunião mais aliviada, pensando que naquele momento de fato fazia algo positivo para as crianças de sua comunidade. A idosa tinha uma memória boa e duvidava que esqueceria do olhar de sua neta quando contou o que tinha sofrido ou a tristeza que a assolara desde então. Ficou em paz ao saber que estava ajudando outras crianças a jamais enfrentarem tal tormento.

Ainda era o começo, sabia bem disso, mas era o início de algo antes nunca visto naquela comunidade.

 

– Nicoly Araújo e Diego Martins

 

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