Onde está Rai?

Uma semana.

Já fazia uma semana que uma de suas alunas mais dedicadas não pisava o pé na escola. Raiane era uma garotinha agitada e muito inteligente, mesmo com a repentina mudança de humor ela jamais faltou aula por tanto tempo.

Tudo mudou desde aquele dia em que a mãe da criança apareceu na escolinha. E nada tirava da cabeça de Patrícia as palavras da mulher para a menina: “Então quer que eu perca meu emprego? Porque sem ele eu não pago as contas, o aluguel, a comida. Ou você vem ou vamos morar na rua, você quer isso?”. A ameaça reverberara na mente da professora como um eco que não se dissipava. Havia algo errado ali, mas o que era? O que ela faria?

Patrícia tentou conversar com outra colega professora, porém as respostas foram frustrantes.

– Paty você tem vários alunos para cuidar. Todos os pais eventualmente são duros com os filhos. Se for se preocupar com cada um deles assim vai acabar enlouquecendo.

Mas o que ela deveria fazer? Fez pedagogia, pois acreditava na diferença que poderia trazer à vida daquelas crianças. Se não se preocupasse estaria traindo todo o seu código de ética pessoal.

Dois dias passaram e Patrícia enviou uma mensagem de texto para a mãe de sua aluna solicitando que comparecesse à escola para uma reunião urgente sobre as faltas de Rai.

A professora não recebeu qualquer resposta.

Mais dois dias e ela compareceu à casa de sua aluna, mas não havia ninguém lá. Uma vizinha informou que mal via pessoas na casa, que mãe e filha passavam a maior parte do tempo na fazenda em que a mulher trabalhava como doméstica.  

Patrícia pediu para que a senhora avisasse a mãe de Raiane que a professora do colégio de sua filha precisava falar urgentemente com ela.

O fim de semana veio e Patrícia não aguentava mais esperar. Foi novamente à casa de Rai. Bateu palmas em frente à cerca de madeira. Ouviu alguns barulhos dentro da casa e seu coração saltou. A porta rangeu e os passos soaram em direção à cerca.

Raiane abriu o portão e pareceu assustada com a presença da professora. Patrícia abriu um largo sorriso.

– Como você está? – perguntou tentando não parecer demasiadamente aliviada por ver sua aluna saudável, sem aparentes marcas de agressão.

– Eu… bem. O que a senhora veio fazer aqui? – algo no tom da menina era urgente e a professora não pôde deixar de ficar incomodada, como se em algum lugar no fundo de sua mente aquela luzinha vermelha que alertava a presença de problemas estivesse voltando a piscar vagarosamente. 

– Senti sua falta na aula, além do mais você quem sempre faz as ilustrações no quadro quando preciso. Ninguém mais possui esse talento, nem mesmo eu.

Os cantos dos lábios da criança se esticaram em um sorriso vergonhoso. Patrícia tirou da bolsa um caderno com as lições e o esticou para que Raiane o pegasse.

        – As lições dessa semana. Posso ficar hoje com você tirando dúvidas. Assim você pode voltar para a escola na segunda sem atrasos no conteúdo.

        Raiane encarou o caderno, seus olhos brilharam, mas a criança logo baixou a vista. – Não acho que posso voltar. Minha mãe e eu vamos nos mudar pra fazenda e eu vou pra outra escola mais lá perto.

        A professora ergueu uma sobrancelha. – Não me notificaram da sua transferência, Rai.

        A menina parecia nervosa e mordia a parte interna da bochecha. Logo sua mãe saiu da pequena casa e esticou o pescoço para fora do portão de madeira.

        – O que eu posso fazer por você? – a frase deveria ser educada, mas o tom da mulher parecia irritado. Patrícia normalmente era uma pessoa paciente, tinha que ser já que dava aulas para mais de trinta crianças de uma vez, mas estufou peito e respirou fundo para não perder essa virtude com aquela mulher que a ignorara tão deliberadamente.

        – A sua filha não foi mais às aulas e eu vim aqui na sua casa e deixei recados. Por que não procurou a escola? Ficamos todos preocupados com Raiane.

        A mulher tocou no ombro de sua filha a puxando para dentro dos portões. De jeito nenhum que Patrícia deixaria a garota se ausentar assim, segurou a mão da criança. – Gostaria de falar a sós com a Rai e depois com a senhora. – disse a professora no seu tom mais firme.

        – A senhora pode falar o que quiser, mas eu fico perto da minha filha.

        A professora tentou se manter paciente. – Rai me disse que irão se mudar, estamos no fim do período letivo, espere que termine ou ela poderá ser prejudicada.

        – Olha eu já conversei com a minha filha, já tá tudo certo. Eu preciso manter a casa desde que o meu marido morreu, que Deus o tenha. Não posso perder esse emprego.

        A mulher parecia triste, talvez Patrícia a estivesse julgando mal. Porém estava ali, piscando, aquela luz de emergência.

        – Entendo a sua situação. Auxiliarei Rai da melhor forma que puder. Posso passar lições para fazer em casa e dar algumas aulas quando ela não puder ir para a escola, mas é importante que termine esse período letivo.

        A luz piscava. De jeito nenhum Patrícia deixaria Raiane mudar de escola só para correr o risco de ter professores que não se importavam com ela ou que sequer conheciam a menina brilhante que era para assim identificar que algo estava errado, que algo tinha mudado.

        Raiane estava com a cabeça baixa e a conversa encerrou-se ali. Patrícia ao menos tinha a esperança de que a mãe da criança entendesse a importância de deixar a filha na escola por mais aquele mês.

        Porém, na segunda-feira a criança não apareceu na escola e a professora mal consegui se concentrar em seus outros alunos. Depois de dispensar a turma mal preocupou-se com o seu almoço. Apenas pegou sua bicicleta e pedalou até a delegacia que seu amigo trabalhava.

“Apenas uma conversa. Pedirei um conselho. Não irei fazer denúncias se não tenho fundamentos”

Daniel estava lá e a recebeu com um sorriso largo e um brilho no olhar. – Paty! Que honra.

A mulher bufou e abanou a mão, dispensado todo aquele tom galanteador como se fosse um mosquito.

– Preciso de ajuda – pediu.

Daniel olhou para a mulher, sua respiração ofegante e seu rosto esbranquiçado e sentiu o coração procurar a garganta para fugir do peito, um nó se formou ali. – Fizeram algo com você…?

Patrícia bufou mais uma vez. – Não, não. É uma de minhas alunas. Ela não vai à aula já faz mais de uma semana.

O delegado fechou a cara. – Paty eu sei que sou um ótimo profissional…

Patrícia girou os olhos. – Muito humilde.

– Mas não acho que tenha qualificações para falar de seus alunos, você deveria procurar outra professora ou até a diretoria. – Continuou Daniel como sequer tivesse sido interrompido.

– Quero a sua opinião. Sei que se preocupa tanto quanto eu.

O homem anuiu e Patrícia contou toda a situação e como não parava de pensar naquilo. – Eu era professora daquela garotinha, a Maria… eu senti algo errado, mas não levei isso à sério.

Daniel se inclinou na cadeira e colocou a mão sobre a de Patrícia, que lutava para conter as lágrimas. As crianças eram tudo para ela e o delegado sabia que sua amiga de longa data se preocupava com todas como se fossem seus filhos. Ela sim era uma profissional incrível.

– Acha que Raiane possa estar sofrendo o mesmo tipo de violência?

Patrícia se sobressaltou. – Não! Quero dizer… eu não posso ser capaz de fazer tais acusações, posso? – ela mordeu os lábios. – Só acho que algo está errado, mas não sei dizer ao certo o quê e também não posso deixar pra lá.

– Então não deixe. – respondeu Daniel.

– Mas o que eu faço? – a professora parecia desesperada.

– Você sabe o que tem que fazer, só precisa ter coragem.

Patrícia respirou fundo e anuiu. – Vou falar com o conselho tutelar.

 

Nicoly Araújo e Diego Martins

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