A interrupção da gravidez é conduta ilícita no ordenamento jurídico brasileiro, estando tipificada no Código Penal nos artigos 124 a 128. Todavia, existem exceções dispostas na Constituição Federal que elencam situações que, quando presentes, excluem a punibilidade da conduta.
Tais situações são:
- Aborto necessário: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante;
- Aborto sentimental: quando a gravidez resulta de estupro;
Foi sob uma dessas hipóteses que uma criança de apenas 10 anos, vítima de estupro de vulnerável desde os 6 anos de idade, pôde realizar o procedimento de interrupção da gravidez em 2020.
O caso agitou o Brasil não só pela brutalidade sofrida pela menina, que passava por uma gestação de risco, mas também pela recepção desumana causada por parcela conservadora da população que tentou impedir a realização do procedimento, que é autorizado pela legislação pátria desde 1940. Por esse motivo, a criança teve que realizar o procedimento de interrupção da gravidez em outro estado.
Não são recentes, no entanto, as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que desejam realizar o aborto legal, visto que a legislação acerca do tema sempre foi vaga. Apenas em 2013 foi aprovada lei garantindo que o Sistema Único de Saúde (SUS) oferte atendimento integral e gratuito, incluindo a interrupção da gravidez (caso a vítima opte por isso), às vítimas de estupro.
Dez dias após a realização do aborto da criança de dez anos que o Ministério da Saúde editou Portaria a fim de atualizar a regulamentação e os requisitos para se obter a autorização do procedimento de interrupção da gravidez.
A Portaria define que o médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelos estabelecimentos que acolheram a paciente estão obrigados a comunicar às autoridades policiais os casos em que haja indícios ou confirmação do crime de estupro e dita as fases do procedimento de autorização:
- A gestante relatará o evento perante dois profissionais da saúde. O exposto será descrito em um “termo de relato circunstanciado” que deverá ser assinado pela gestante ou por seu representante legal, caso seja menor de idade.
O termo conterá: local, dia e hora aproximada do fato; tipo e forma de violência; descrição dos agentes da conduta, se possível; identificação de testemunhas, se houver;
- Após os exames (exame físico geral, exame ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais exames complementares) o médico responsável emitirá parecer técnico detalhado. Em seguida, três integrantes, no mínimo, da equipe de saúde multiprofissional subscreverão o Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez, não podendo haver desconformidade com a conclusão do parecer técnico;
- A gestante assina um Termo de Responsabilidade (se for incapaz, também assinará o seu representante legal) que conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica e de aborto, caso não tenha sido vítima do crime de estupro;
- A gestante assinará (se for incapaz, também assinará o seu representante legal) o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que conterá as seguintes informações:
- a) os desconfortos e riscos possíveis à sua saúde;
- b) os procedimentos que serão adotados quando da realização da intervenção médica;
- c) a forma de acompanhamento e assistência, assim como os profissionais responsáveis; e
- d) a garantia do sigilo que assegure sua privacidade quanto aos dados confidenciais envolvidos, passíveis de compartilhamento em caso de requisição judicial;
- e) declaração expressa sobre a decisão voluntária e consciente de interromper a gravidez.
As críticas mais intensas à Portaria concentram-se na obrigatoriedade, por parte dos médicos e profissionais da saúde, de notificarem a autoridade policial, pois neste tipo de crime, na maioria das vezes a vítima é colocada na posição de culpada, é julgada socialmente e com a nova portaria sequer poderá decidir sobre iniciar ou não um processo criminal. Aos olhos da desembargadora do TJSP e especialista em Direitos Humanos Kenarik Boujikian:
“É indispensável realizar a separação de dois momentos decisórios na hipótese de violência sexual: o da interrupção da gravidez e de iniciar um processo criminal”
Outras críticas sobre a Portaria fixaram-se também no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, visto que se concentra apenas em demonstrar à gestante os riscos e desconfortos que podem ser suportados, em desconformidade com a portaria de 2005, em que eram esclarecidos também os direitos que a gestante possuía, tais como pré-natal e parto apropriados, além das alternativas após o nascimento, que incluem a escolha de permanecer com a criança e inserí-la na família, ou de proceder com os mecanismos legais de doação.
Por fim, a portaria 2.282/2020 foi criticada principalmente por ter surgido tão rapidamente mesmo em um contexto de pandemia, onde o Ministério da Saúde encontrava-se saturado de demandas urgentes e logo após o aborto da criança de 10 anos, que agitou o Brasil e a massa conservadora.
Mas e você? O que você acha da Portaria n° 2.282/2020 do Ministério da saúde?
– Nicoly Araújo