Uma pessoa de confiança

Patrícia terminaria a aula mais cedo. Decidiu isso quando viu Raiane entrar na sala de aula depois de ter faltado a aula do dia anterior. A garota sentou no fundo da sala. Ribeirinha a encarava carrancuda enquanto via a amiga caminhar para longe. Uma pontada de tristeza tingia os olhos na menina.

A professora havia ficado preocupada com Raiane dois dias atrás, quando se escondeu atrás das pernas de Patrícia e foi dissuadida a ir para a casa pelas ameaças da mãe. Algo ali incomodou Patrícia a ponto de lhe tirar o sono.

Foi quando Raiane faltou no dia seguinte que a professorinha não pôde evitar a necessidade de intervir. A garota, que geralmente era uma aluna exemplar, estava faltando a maioria das aulas e quando aparecia na sala se metia em confusão ou dispersava-se durante a aula, não ouvindo o que a professora dizia.

Patrícia tentou conversar com outros professores, saber o que eles fariam no lugar dela, mas as ideias variavam entre punir a menina com mais tarefas e conversar com os pais ou com a própria garota. A última opção parecia a mais correta, já que Raiane parecia ter medo da mãe ou ao menos medo de alguém. E esse medo a fazia demorar-se a cada lição e ficar cada vez mais tempo na escola do que em casa.

Porém, Rai havia faltado no dia seguinte e isso aguçou os sentidos de Patrícia de tal maneira que a professora não parava de fazer suposições. Decidiu que se a aluna não aparecesse no dia seguinte iria fazer uma visita a sua casa.

Mas Raiane apareceu com o lindo rostinho parecendo tão triste e cheio de olheiras. A única coisa que a impediu de ir conversar com a menina no mesmo instante foi a ciência de que isso espantaria a menina, o que não ajudaria a garotinha a se abrir.

Patrícia improvisou uma lição de pintura, as preferidas de Rai – e das crianças em geral. Ela pediu para que pintassem uma pessoa de confiança, alguém que as crianças sabiam que poderiam contar a qualquer momento. Aquela seria uma lição produtiva para todas as crianças que, depois de verem um filme infantil sobre agressão física, ajudariam a professora a entender se a maioria representaria um familiar.

Mas Patrícia queria mesmo saber quem Rai desenharia. Quem ela poderia pedir ajuda para conversar com a criança sobre os problemas que a afligiam.

Patrícia viu Ribeirinha pintar desajeitadamente sua mãe e sua avó. A tinta estava no rosto da menina enquanto ela franzia o cenho a fim de ver como como poderia consertar o desenho.

– Normalmente a Rai desenhava e eu só coloria – disse a menina, triste. – Tem algo estranho com ela – sussurrou para a professora. – Ela não quer me falar, mas não significa que ela não queira falar para alguém.

Patrícia piscou um tanto atônita e sorriu. – Você é uma criança muito esperta, sabia?

Ribeirinha fez que sim com a cabeça. – Sabia sim. É uma coisa que ouço muito. – Ela deu de ombros com desdém e Patrícia alargou o sorriso.

A professora andou por algumas cadeiras, ansiosa para chegar no fundo onde Rai estava sentada e concentrada no desenho. Ela elogiou alguns alunos, sorriu para outros que estavam se esforçando bastante e, enfim, chegou à carteira de Raiane.

A criança desenhou uma mulher sorridente, de pele parda e cabelos longos e encaracolados. Vestia um lindo vestido rosa florido e tinha uma tiara entre os fios castanhos. Patrícia tomou uma respiração profunda, seu coração saltando no peito com orgulho, ela perguntou, mesmo sabendo a resposta:

– Quem é esta? É um desenho lindo, Rai.

Raiane sorriu fracamente. – Foi difícil chegar ao seu tom de pele. Tive que misturar algumas cores.

Ela mostrou uma das tigelas em que misturara as cores. – Eu…

Patrícia lutou com a emoção que consumia suas palavras. Ela havia se tornado educadora por que amava as crianças e como poderia tocar suas vidas. Mas saber que seria de tal maneira… a ponto de ser a pessoa que aquela menina mais confiava, era inspirador.

Quando a aula terminou, Rai levou seu desenho para a professora como presente. Patrícia aproveitou a oportunidade para pedir que ficasse mais um pouco para que conversassem.

Raiane parecia aliviada. A menina sentou-se em uma cadeira a frente da professora e Patrícia sorriu amplamente.

– Você é uma menina muito talentosa, Rai. Seus desenhos… Nem eu saberia fazer algo tão bonito.

Os olhos da menina brilharam com orgulho antes de ela dar de ombros. Patrícia pensou na menina tímida e humilde tendo uma melhor amiga comunicativa e orgulhosa. Não havia uma dupla melhor.

– Muito obrigada pelo presente. – a professora disse e foi sincera. – Fico honrada em ter essa posição na sua vida e por isso gostaria de que fosse sincera comigo, assim como sou sincera com você.

Rai estranhou por um segundo, mas anuiu com a cabeça.

– Eu senti sua falta ontem. Aconteceu algo?

– Não estava me sentindo bem – a garota afirmou como se tivesse a fala gravada.

– O que estava sentindo? Está melhor?

A garota assentiu. – Era dor de barriga. Mas estou bem.

– Que bom. – Patrícia sorriu, mas ainda achava aquilo estranho demais. – Mas e a sua mãe? O que aconteceu aquele dia? Porque você não queria ir para casa.

A garota empalideceu. – Eu… eu só tinha brigado com ela, não era nada.

– Não parecia ser nada. Eu sinto que há algo que você está me escondendo. O que é?

A menina levantou da cadeira e olhou para o chão enquanto falava: – Eu tenho que ir para casa. Minha mãe está esperando.

Patrícia respirou fundo e assentiu. Então olhou para a criança que dava passos largos até o portão. – Rai. – a professora chamou e a criança olhou para trás. – você pode confiar em mim. – a menina anuiu e continuou andando.

No dia seguinte Raiane faltou e no próximo também.

 

Nicoly Araújo e Diego Martins

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