A audiência

Ribeirinha achava que aquela era a semana mais custosa e dolorosa de toda a sua, não tão longa, vida. A audiência, como todos chamavam, ocorreria em uma quarta-feira e o tempo até que ela chegasse se arrastava preguiçosa e forçosamente.

A menininha culpava o clima nebuloso que se instalara na casa desde que aquele homem chegou com a intimação. Tia Neuza não se sentia bem desde então. Sempre com dor de cabeça e tonturas.

Entretanto, todos os olhos se voltavam preocupados para Maria, que regredira significativamente no tratamento.

Ela havia começado a ir para as aulas três vezes na semana e estava se adaptando. No início Ribeirinha ouvia murmúrios nada discretos dos alunos da escolinha enquanto estava com a prima, mas ela e João acompanhavam Maria desde a entrada na sala de aula até a saída dela.

Depois de um tempo a menininha já se sentia menos ansiosa ao ir para a aula e participava bem das atividades em grupo.

Quando o homem (oficial de justiça) chegou e entregou o papel com a intimação todos já tinham ideia do que se tratava graças as aulas de Patrícia e Daniel sobre o procedimento. Ainda assim não estavam preparados.

Maria se escondeu sob as cobertas abraçando o travesseiro de maneira desesperada. A garota cerrou os olhos, o rosto adquirindo um tom pálido, tentado pensar em qualquer outra coisa que não fosse vergonha e medo.

Depois de passados dois dias desde a breve visita do oficial de justiça, Maria chorou para que a família não a deixasse ir. Ela sentiu que estava caindo em algum lugar profundo dentro de si mesma. Nesse lugar habitavam as lembranças ruins, todas concentradas nos últimos meses.

Todos os dias desde quando foi à casa do vizinho e aceitou os doces eram exaustivos. Uma batalha contra memórias e sentimentos de culpa, nojo e impotência. Maria estava cansada demais para falar mais uma vez daquilo, para contar mais uma vez a sua história e voltar a sentir toda a vergonha daquele dia.

Sua família estava nervosa demais. Tentavam não tocar no assunto na frente da menina, mas Maria sabia que aquele era o tópico principal das conversas da mãe e do restante da vila.

Faltava apenas uma semana para o dia em que a audiência foi marcada. Maria mal conseguia comer. Qualquer coisa que ousava parar em seu estômago a fazia passar mal a ponto de vomitar. A assistente social que a acompanhava disse que ela estava sofrendo de ansiedade, mas a garotinha tinha na mente que o significado da palavra não descrevia seu sentimento; afinal estar ansioso é esperar bastante por algo, não era? e tudo o que ela queria era adiar aquele momento.

Quando faltavam apenas dois dias para a audiência Maria não conseguia mais dormir, ou comer, ou brincar. O mundo parecia estar em contagem regressiva e a cada segundo passado encolhia mais um centímetro ao redor dela.

Vó Therezinha pegou alguns retalhos de pano e pediu a ajuda da neta para costurar uma boneca nova para Ribeirinha. No início Maria achou que havia perdido a prática, mas com o tempo as mãos começaram a trabalhar automaticamente dando pontos invisíveis no vestidinho da boneca de pano.

Maria adorava costurar. Costumava sempre pedir pedaços de pano para a avó e com eles produzia as mais belas roupinhas de boneca. As amigas ficavam enlouquecidas com o talento da garotinha, mas a verdade era que Therezinha havia tido muita paciência com a neta ensinando os pontos e os recortes corretos no tecido.

Os últimos dias foram mais leves com a costura, cuja demanda era impressionantemente alta, já que do nada surgiram roupas para remendar, descosturar, recortar e ajustar o tamanho. Vó Therezinha contava com a ajuda da neta e Maria ficava aliviada em poder fazer aquilo.

Depois do que havia acontecido com ela, a psicóloga que tratava da menina havia indicado diários, pintura e música para a garotinha. Dizia que poderiam ajudar. Maria tentou todos, mas nenhum havia dado certo, talvez tivesse sido porque ela nunca havia tentado a costura.

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Era a coisa mais dolorosa que já havia sofrido, pensava Neuza. Ela já havia perdido um bebê e quase morreu no parto de sua única filha, mas nenhuma dor era comparada com a de ver sua menina entrando naquela sala sozinha.

As mãos de Maria apertavam forte as barras do vestidinho amarelo. O cabelo crespo estava preso nas marias chiquinhas que a mãe tão caprichosamente fez. Neuza olhava para sua cria e só pensava no quão pequena sua Mariazinha parecia.

A menina parecia se recusar a parecer criança diante da mãe. Mantinha uma postura respeitável, mas escondia mal o medo nos olhos.

Neuza apertou o braço da filha.

– Só mais essa vez e não vai precisar falar disso nunca mais, a não ser que você tenha vontade.

Maria anuiu e abraçou a mãe.

A assistente social pôs a mão nas costas da criança e a guiou até a sala onde se encontrariam com o juiz.

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Maria sentou em uma cadeira grande e se sentiu desconfortável e impotente. Um homem com uma bata preta estava sentado a sua frente e haviam microfones e até uma câmera ao redor deles. Na cidade de Maria ainda não havia a estrutura necessária para a realização do depoimento especial.

– Boa tarde, Maria. Tudo bem? Como está se sentindo? – O homem perguntou. Ele tinha um rosto redondo e um sorriso gentil. Parecia ser bom, mas a menina havia aprendido do pior jeito que as aparências não significavam nada.

Maria anuiu. Sentia como se o sangue tivesse esvaído de seu rosto. Enquanto isso o embrulho no estômago aumentando a cada batida rápida do coração. – Bem. – respondeu em um tom baixo e acelerado.

– Não precisa ter medo – Ele disse. – Me chamo Gustavo e essas são as pessoas que trabalham aqui comigo. Estamos aqui para te ouvir.

De alguma maneira isso a havia deixado mais nervosa. Ela procurou rostos familiares na sala e viu o da assistente social que a acompanhava. A mulher sorriu a encorajando.

– Você pode levar o tempo que precisar.

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Maria sentia que ali encerrou uma etapa gigantesca e que com ela ia embora o peso nos ombros.

No momento em que o juiz proferiu sua decisão tudo o que Maria e a família esperavam não era apenas a palavra “culpado”, mas o fim de um ciclo de meses tendo que reviver a violência.

Todos foram para casa depois, não havia comemoração, apenas alívio. Obviamente Maria ainda teria a vida toda para lidar com aquilo, porém tinha a família perto, então estava otimista.

Todos se reuniram na mesa pequena da cozinha para comer o ensopado famoso de Therezinha e falaram sobre tudo, menos aquele dia. Dessa vez sem evitar o assunto de propósito, eles só tinham muitas coisas para conversar além disso.

Ribeirinha era a mais faladeira, estava empolgada para o início das aulas e queria usar o material novo.

De certa maneira até Maria estava, tanto que após o jantar foi conferir todo o conteúdo da mochila enquanto sua prima mostrava a Barbie que a melhor amiga havia dado a ela e falando das roupinhas que queria que Maria fizesse.

O futuro não estava cheio de dias normais, na visão da criança, contudo seriam melhores do que aqueles últimos.

Notas da autora:

É sempre uma missão para um escritor ser fidedigno. Eu mesma tenho medo de não ser fiel à realidade, de amenizá-la ou a deixar infantil. Mas a minha visão é a da Ribeirinha, assim como você estou descobrindo algumas coisas com ela.

ps.: me procurem para sugestões.

– Nicoly Araújo e Diego Martins

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