Justiça?

Daniel olhou para a família que rodeava a sua sala. Três mulheres, duas delas extremamente escandalosas, e outra tão serena que destoava de toda a confusão.

O delegado massageou as têmporas. – Senhora, por favor, eu não sou o responsável…

– Eu trouxe ela aqui! Minha neta estava irreconhecível e tudo culpa daquele monstro. Eu trouxe ela pra que a justiça fosse feita e vocês soltam ele? – Agora era a idosa quem gritava a plenos pulmões, Daniel a reconheceu como a avó da pequena menina.

– Como vocês podem fazer isso com a minha filha? Todos vocês viram como ela chegou aqui! – Neuza apontou para sua única filha, Maria. A mulher estava transtornada, mal conseguia respirar fundo, sua cabeça doía e a visão começava a ficar turva. – Preciso me sentar.

O delegado Daniel rapidamente arrastou uma cadeira até ela e pediu que se acalmasse. A mulher transpareceu o medo que sentia pela filha.

– Ele não pode ficar impune.

Maria correu até a mãe e perguntou como ela se sentia. Neuza se orgulhava da menininha altruísta que tinha, desde que a filha nasceu ela se perguntava como seria possível – logo ela – gerar algo tão bom e lindo.

Não podia aceitar que alguém com o coração maldoso o suficiente a ponto de macular para sempre uma parte de sua filha, pois aquilo havia manchado aquele coraçãozinho bondoso. Neuza rezava todos os dias para que sua menina se recuperasse.

– Mamãe vamos para casa, por favor. – Maria tinha lágrimas relutantes nos olhos. Queria parecer forte para não afetar mais ainda a mãe que passava mal, mas a menina mal conseguia olhar para o lugar sem trazer a tona sentimentos que ela tão forçosamente lutava para se livrar. – Por favor- Insistiu.

Lúcia interviu vendo a situação, o coração apertado pela irmã e principalmente pela sobrinha. – Neuza, vamos. Não deveríamos ter vindo e muito menos ter trazido a criança.

– Eles precisavam ver a minha menina. Precisavam olhar pra ela e ver como é injusto. – Neuza só sussurrou dessa vez. Fez isso para somente o delegado ouvir.

As mulheres saíram na mesma velocidade que entraram. Daniel passou a mão pelos cabelos, havia se tornado delegado há apenas dois anos e já vira naquela delegacia do interior coisas que arrebataram completamente seu sono a noite.

Esperava desenvolver algum escudo contra isso, mas nada havia mudado nos dois anos.

Obviamente não era o fim. O acusado esperaria o julgamento em liberdade e para a maioria das famílias isso era sinônimo de impunidade. Ele mesmo sabia que não significava isso, mas precisou de cinco anos na faculdade de direito para enfim absorver aquilo.

Não poderia culpar a mãe, afinal o molestador de sua filha estava livre e para os familiares super protetores significava que um criminoso estava a solta enquanto uma garotinha sofria gravemente.

O homem sentiu que precisava fazer algo.

***** **** ****

Daniel foi no seu carro, pois não queria chamar atenção, até a escolinha onde uma amiga de infância dava aula. Patrícia reconheceu de imediato o colega e correu para abraçá-lo, beijando ambas as suas bochechas.

– Dani! Meu Deus como você está charmoso e forte! – as bochechas do homem ficaram vermelhas e ele coçou o couro cabeludo.

– Precisei malhar para conseguir a vaga e isso acabou virando hábito.

Patrícia abriu um sorriso largo. – Eu definitivamente não seria professora se essa fosse uma condição para o cargo. Você parece preocupado. O que há?

Daniel olhou para ela como se falasse “você sabe”. E Paty sabia.

Ela franziu os lábios e anuiu. – Maria. – a mulher envolveu a própria cintura em um abraço, como se sentisse um frio repentino. – Por quê? – Patrícia parecia infinitamente confusa. – Por que ele está livre?

Daniel prometeu que explicaria. Então entraram e Patrícia o fez um café. A conversa seria longa.

***** **** ****

A comunidade não havia ficado tão agitada desde… Ribeirinha não lembrava de nenhuma agitação dessa magnitude. Os adultos falavam sobre uma tal de afronta e retaliação.

Como a menina era demasiadamente jovem, possuía um vocabulário mais curto e nunca havia escutado tais palavras em seus livros infantis. Quando perguntou à mãe, Lúcia a empurrou para o quarto e quando fez o mesmo questionamento à Therezinha a avó a encarou com um ar de “não é da sua conta!”.

Limitou-se a pensar que era uma coisa ruim, já que as pessoas pareciam zangadas.

Alguns dos tios de Ribeirinha – que não se davam ao trabalho de aparecer muitas vezes – surgiram como uma chama e gritavam essas palavras.

Como em uma grande mata com folhas secas o fogo se espalhou rapidamente e ninguém estava fazendo nada sobre isso. Professora Patrícia então surgiu como um anjo. Ela era o tipo de pessoa que quando falava sempre era ouvida, tamanho o respeito que mantinham por ela. Paty estava acompanhada por um homem alto e forte que ela reconheceu como o delegado do caso de Maria.

Em alguns momentos as pessoas amontoadas nas redondezas da casa só sussurravam acerca das informações contidas na cartilha entregue pela professora.

Ribeirinha deu uma olhada, mas haviam mais palavras que não entendia.

– Muitos podem não entender, então eu irei explicar. Sou o delegado Daniel. Essas são cartilhas que consegui de um amigo meu do Tribunal de Justiça. Elas explicam o passo a passo do atendimento nos casos de violência sexual.

– Como podem ver, a família de Maria foi à delegacia onde Daniel trabalha e registraram o boletim de ocorrência. – Patrícia começou a explicar e olhou para o amigo pedindo que a ajudasse.  

– Após é instaurado o que chamamos de inquérito policial, uma investigação para apurar os fatos. O processo agora está nas mãos de um juiz, ele decidiu pela liberdade provisória do acusado.

“Absurdo!” uns exclamaram “É isso que chamam de justiça?!” gritaram outros.

– Não é o que imaginamos! Isso não significa que aquele homem vá ficar impune, só que vai esperar livre até o julgamento.

– E onde isso é melhor? Onde isso é justo professora? – a voz de Therezinha estava quebrada pelo rancor e preocupação.

– Não deve ser para vocês, eu sinto muito. Mas aquele homem será julgado, ele será condenado pelo o que fez. – Paty retrucou. – A dor de vocês deve ser gigantesca, porém não pode ser mais sensata que a razão.

– É assim que a justiça age. Ser justo é agir pela razão, é assim que tentamos pegar os bandidos e deixar livres os bons. – Daniel completou – Precisamos ser razoáveis, cautelosos. A liberdade é um de nossos bens mais preciosos, a justiça tem que agir com cuidado ao limitar esse direito.  

Não foi fácil para que todos entendessem. Alguns saíram de lá bufando reclamações, porém Ribeirinha entendia. Ao menos achava que sim.

Ela amava correr, brincar com os amigos, ir para a escola e tudo mais que considerava fazer parte de sua liberdade. Imaginava ser aquilo precioso demais para todas as pessoas do mundo. Alguns eram maus e deveriam ser mantidos longe, mas os bons deveriam ser preservados.

Por isso a cautela, outra palavra que havia aprendido aquela tarde, deveriam agir com cuidado quando se trata de um bem tão valioso. Ribeirinha então sabia que não era impunidade só porque todos desejavam que ele fosse levado. A menininha pensou que se uma criança como ela havia entendido, então os outros também entenderiam.

Patrícia ficou até depois que Daniel voltou ao trabalho. Ela explicava para os curiosos sobre as informações da cartilha. Ribeirinha estava ao seu lado, absorvendo tudo, mas a mais curiosa era Neuza.

A mãe só queria saber o que viria a seguir e se preparar para lidar com aquilo, bem como dar suporte à Maria quando precisasse.

– Nicoly Araújo e Diego Martins

“O afeto ou o ódio mudam a face da justiça.”

Blaise Pascal

Faça o download da cartilha usada como referência neste capítulo pelo link:

https://futurobrilhante.net.br/materiais/

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