A sala de aula estava tão barulhenta que mal se distinguiam as vozes. Professora Patrícia não deixou de pensar que se fossem só as suas crianças ali não haveria tamanha bagunça quanto aquela produzida pelos pais.
Uma reunião havia sido convocada pela direção assim que alguns pais trouxeram reclamações sobre Patrícia e suas aulas inadequadas.
– Silêncio! – Gritou Edileusa, a diretora do pequeno colégio. – Um de cada vez. Assim não consigo ouvir nem meus pensamentos. Vocês falam e Patrícia responde depois.
Edileusa tinha menos de um metro e sessenta centímetros, mas a voz grave e a postura rígida colocavam medo até nas maiores pessoas. Isso porque a mulher, baixa como era, conseguia de maneira inexplicável olhar para todos com superioridade, mas não de uma maneira ruim.
Uma das mães da primeira fileira, que estava com seu bebê de colo, foi a primeira a falar.
– Juliana, minha filha, chegou em casa esses dias falando que a professorinha tinha ensinado sobre partes íntimas. Minha menina tem só 5 anos. Isso é um absurdo. Não tem mais nada pra ensinar na escola não?!
– O Enzo chegou com a mesma conversa em casa. O que vocês querem? Daqui a pouco ensinam as crianças como faz sexo – Esbravejou outra mãe.
O murmurinho voltou. Patrícia cerrava os dentes e mantinha os punhos fechados. Tirar a paciência de uma professora era coisa rara, mas ela já ouvira tanto que resolveu erguer a voz.
– Vocês acham que eu estou ensinando coisas ruins para os seus filhos? Olhem ao redor! Ruim mesmo são as coisas que acontecem se não ensinamos como se protegerem. Eles são inocentes. Precisamos ter iniciativas que previnam a violência.
– Isso aconteceu poucas vezes aqui. Não precisa desse murmurinho todo. Já tá todo mundo na cadeia.
Lúcia não costumava a ir a reuniões, muito menos falar nelas. Ribeirinha dizia que ela era diferente de todos da família porque era a única que tinha mais sensatez, por isso não brigava tanto quanto Therezinha. Mas quando soube sobre o que os pais queriam discutir, e quando a filha insistiu para que fosse defender sua professorinha preferida, Lúcia viu que dessa vez não poderia fugir.
– E poderia não ter acontecido nunca, se já tivéssemos falado sobre isso. O objetivo é prevenir e eu garanto que é muito melhor do que remediar. – Lúcia falou e as mães se calaram em sinal de respeito pelo acontecido na família.
– Vocês também sabem que recentemente alguém que estava na minha casa, que tinha a minha confiança, tentou tirar a roupa do meu filho e fazer maldade, mas eu ensinei o Kaio. Por isso eu posso estar aqui e não na cidade grande atrás de tratamento pra o meu filho, como a minha irmã está fazendo.- continuou a mulher.
– Eu sinto muito, Lúcia. Mas não acha que é demais aceitar que ela ensine sobre partes íntimas pra crianças tão novas? – Uma das mães da comunidade falou em um tom preocupado.
– Até parece que tua filha não requebra até o chão com aquelas músicas imundas. Isso não é tão ruim quanto? – outra mãe questionou e todas começaram a discutir novamente.
– Vejo que discutir não vai dar em nada, Patrícia. Talvez seja melhor pedir desculpas e suspender esse conteúdo das aulas. – A diretora Edileusa sugeriu em um tom seco. – Algumas pessoas simplesmente não conseguem compreender.
Patrícia olhou para o chão, já lecionava naquela escolinha há 5 anos e no momento que iniciou um assunto relevante, mas socialmente delicado, os pais começaram a questionar seus métodos. Mas como ela poderia ter alguma intenção ruim? Ela amava cada criança como sua. Talvez nunca tivesse filhos seus, mas cada aluno era uma parte de si e ela sentia no peito o quanto debater sobre o assunto era importante justamente porque os pais não teriam essa coragem.
– Eu comecei a dar aula quando tinha 10 anos, senhora diretora, pro meu avô de 64. Ele não sabia ler nem escrever. Agora ele lê a Bíblia todos os dias. Se um homem de 64 anos pôde aprender do zero uma coisa muito mais difícil, então, essas mães também podem.
Logo a professorinha pegou o giz, riscou o quadro e bateu algumas vezes na lousa para chamar atenção. As mães calaram-se aos poucos, curiosas sobre o conteúdo escrito na lousa.
– Como podem ver, a lousa está dividida em duas partes. Erotização precoce e educação sexual. Acreditem, os dois são muito diferentes.
Patrícia escreveu no quadro negro, abaixo de erotização precoce.
- Exposição à conteúdos sexuais;
- Uso excessivo de maquiagem e acessórios de gente grande;
- Incentivar a namorar, beijar e etc;
- Estimular a criança a dançar como adulto ou a ter gestos de adultos.
– A erotização precoce não é boa, porque estimula e incentiva a criança a ter comportamentos e consumir conteúdos que não são adequados pra idade dela. Ensinar seu filho a dançar funk com letras absurdas, usar acessórios de adulto ou deixar que ele veja uma novela com cena de sexo são exemplos disso. Isso é ruim, porque gera um desenvolvimento precoce e tudo o que queremos é que nossos pequenos vivam plenamente sua infância.
– E como sabemos que o que as aulas que você dá aqui não fazem isso? – Uma mãe perguntou em um tom mais curioso que raivoso, isso deixou Patrícia mais confiante.
– Na aula eu ensino sobre ciência, artes, história. Ninguém veio implicar quando ensinei sobre o corpo humano, os olhos, os dentes, ouvidos… Isso porque ainda tratamos as nossas partes íntimas como um assunto adulto e erótico demais. Mas não é verdade.- Patrícia tomou fôlego e continuou.
– Não estou ensinando seus filhos sobre sexo, até porque não é só pra isso que servem nossas partes íntimas. Eu só estou dizendo que esse é um lugar relevante, que devemos ter cuidado e não deixar que os outros toquem sem haver permissão. Além disso eu ensino a contar para os pais e não sentirem vergonha. Mas como as crianças vão se sentir confortáveis falando isso pra vocês se reagem como se fosse um grande pecado tocar neste assunto?
As mães mantiveram-se em silêncio até que uma delas, Patrícia reconheceu como sendo a mãe de Ribeirinha, se pronunciou.
– A professora tá certa. Não são a mesma coisa e se nós amamos nossos filhos como dizemos que amamos então é dever nosso proteger eles. Patrícia só tá fazendo isso.
– Eu estou tentando, mas preciso de ajuda. Uma professora sozinha não é tão forte quanto seria se agisse junto com as famílias de suas crianças.
A classe foi dispensada, mas todas as mães concordaram que também precisavam de mais aulas assim com o intuito de que também ajudassem seus pequenos.
Patrícia sentiu-se orgulhosa, não de si mesma, mas do poder daquilo que tinha nas mãos. Sabia da relevância do que estava fazendo e como poderia mudar a vida de muitos. A professora esperava com o espírito mais otimista que nunca mais ouvissem sobre um caso de violência sexual infantil na comunidade, pois seria assim que ela saberia que seu trabalho em conjunto com os pais gerou resultados.
A professorinha foi preparar a aula do dia seguinte. Pensou também em elaborar alguma cartilha que serviria de guia para os pais e até alguns professores. Mais tarde Edileusa surgiu na sua sala para lhe dar os parabéns e dizer que se sentia grata pela comunidade ter uma educadora tão dedicada. Saiu da sala de Patrícia deixando uma frase esperançosa de que “a educação muda as pessoas e as pessoas mudam o mundo”.
– Nicoly Araújo e Diego Martins
Referências:
https://lunetas.com.br/sexualizacao-precoce-precisamos-falar-sobre-erotizacao-infantil/