Sabe aquelas pessoas gentis com quem você se identifica de primeira? Ribeirinha se sentia assim com o visitante da sua casa. Therezinha dizia que visitas eram toleradas apenas por algumas horas, ou dias, já que se passara mais que uma semana a senhorinha insistia em chamar Marcos de encostado.
Mas ele era extremamente gentil. Sempre lavava a louça da janta, ajudava nos afazeres de casa e até cozinhava. Como também era muito bom em desenhar, fazia figuras e caricaturas que Ribeirinha amava pintar com o lápis de cor.
Quando vó Therezinha viajou por um dia para a cidade para ver Neuza e Maria, Ribeirinha abraçou a avó e disse pra ela não ter pressa lá e se divertir. A senhorinha reclamou que “quando ela morresse” a neta sentiria sua falta. A verdade é que Ribeirinha já estava com saudades desde que a velhinha saiu de casa para ir para a Rodoviária.
Marcos ficou ajudando Lúcia enquanto as crianças mais velhas estavam na escola. Ribeirinha voltou de lá com Rai, sua melhor amiga, e elas aproveitaram a tarde juntas para sair para conversar e catar algumas acerolas.
– A minha mãe começou a trabalhar em um lugar diferente, fica em uma fazenda enorme. Vou convencer ela a deixar você ir. Podemos ver cavalos lá e tem uns porquinhos muito fofos também!!- Rai exclamou enquanto colocava uma acerola na boca e fazia uma careta. – Essa aqui tá muito azeda!
– Eu quero muito ir ver essa fazenda, pois você fala muito bem dela.
– Lá é muito bonito! – o ânimo de Rai pareceu vacilar – O dono de lá me deu uma boneca Barbie daquelas de verdade.
– Onde tá? Por que você não me falou disso antes? Eu não sou sua melhor amiga? – Ribeirinha estava bem irritada, ela só via as Barbies nas propagandas e sempre quis ter uma original.
Rai apenas deu de ombros. – É que ele é estranho, o fazendeiro. Se você quiser pode ficar com ela. – Ribeirinha, como a criança que era, só se animou com a ideia da boneca e não perguntou nada mais sobre a fazenda ou o fazendeiro.
– Obvio que eu quero! Vou cuidar dela como se fosse minha filha.
Rai se despediu e prometeu trazer a boneca para a amiga. Ribeirinha foi correndo animada para casa.
Chegando perto sentiu logo o fedor de comida queimada e estranhou. Normalmente Lúcia era bem cuidadosa com a comida e os afazeres de casa. Mas animada como estava a garotinha não ligou muito.
Ribeirinha entrou na casa e chamou pela mãe, mas encontrou o irmão do meio sentado vendo tv. Ela perguntou por Lúcia e o garoto deu de ombros.
– Acho que aconteceu alguma coisa, ela tava bem irritada – respondeu a criança.
– Você deve ter aprontado, não é? A casa tá fedendo a queimado. O que foi dessa vez?
O menino olhou para a irmã decepcionado. – Dessa vez não fui eu – enfatizou – Eu nem tava em casa. Deve ter sido o Kaio. Ele tava com cara de assustado.
Kaio nunca aprontava, por isso Ribeirinha não acreditou – Por que será que eu não acredito em você?
João deu de ombros – Acredita se quiser, mas eu não tenho porque mentir. Tenho orgulho do que eu faço.
Ribeirinha bufou e girou os olhos. – Você não tem jeito!
O irmão sorriu sínico, mostrando o espaço vago em que deveriam estar os dois dentes que se recusavam a crescer de volta.
Ribeirinha foi ver a cozinha. O baião parecia carvão na panela. Ela resolveu tirar a comida estragada e lavar o arroz para a mãe aprontar quando chegasse sabe-se lá de onde.
Lúcia não demorou muito para voltar. Kaio estava com a cabeça enterrada entre os ombros da mãe. A mulher parecia furiosa, e Lúcia podia ser tudo, mas não costumava ser assim.
Ribeirinha desconfiou por um segundo que Kaio havia aprontado. Todavia, mudou de ideia quando o olhar da mãe derreteu e demonstrou preocupação.
– Onde está o seu irmão? – Perguntou enquanto encarava sua filha.
– Tô vendo TV – Gritou João.
Lúcia respirou aliviada.
– Ele voltou por aqui? Aquele filho da… – a mulher interrompeu o xingamento – O Marcos?
Ribeirinha fez que não e João veio ver como a mãe estava.
– O que aconteceu? – Ele estendeu os braços e pegou Kaio no colo. Ribeirinha achava engraçado como o irmão do meio vez ou outra assumia o papel de “homem da casa” e protegia as mulheres.
Depois do que aconteceu com Maria, João acabou insistindo em acompanhar as meninas e as vezes até a avó Therezinha quando saíam.
Lúcia parecia assustada, mas respirou fundo e pediu que os filhos sentassem em um lugar que achassem confortável para que pudessem conversar.
Todos foram para o quarto e Lúcia sentou-se junto com suas crianças. Ela mesmo se sentia uma menininha naquele momento e desejou com todas as suas forças que sua mãe estivesse lá com ela.
Kaio se aninhou novamente no peito da mãe e a observou começar a falar.
– Eu deixei Kaio brincando no quarto. Ele estava pintando algumas coisas e fui fazer o almoço – Lúcia passou alguns segundos respirando e olhando para o teto, queria chorar, mas não podia.
– Eu achei que estava tudo bem. Kaio sempre brinca sozinho no quarto, vocês sabem.
– Tudo bem, mãe. – João segurou a mão de Lúcia e a mulher sorriu fracamente.
– Estava silencioso e quando está silencioso e se tem uma criança pequena em casa sempre tem algo de errado.
Mais uma pausa para respirar.
– Quando eu fui no quarto checar, Marcos estava brincando com o seu irmão ele estava tirando a roupa de Kaio.
A voz de Lúcia vacilou e Ribeirinha não precisou de muito mais para entender o que havia de errado. Ela quis chorar, Kaio não podia passar pelo mesmo que Maria. O menino era tão pequeno e frágil.
– Foi o mesmo que aconteceu com a prima? – João, que também havia entendido, perguntou.
Lúcia fez que não com a cabeça.
– Kaio disse que estavam brincando de médico, que Marcos tentou tocar nas partes íntimas, mas ele disse que só a mamãe podia porque ela que lavava.
Ribeirinha estava confusa, Marcos era uma pessoa tão boa, sempre fazia desenhos… Mas lembrou-se da prima que ganhou doces “em troca” das carícias.
– Marcos fugiu. Então chamei o seu primo Marcelo pra vir aqui dormir com a gente.
Ribeirinha anuiu.
– Vocês têm que ter cuidado com essas brincadeiras – Ela olhou para criança no seu colo, Kaio olhava com atenção, o pipo mexendo na boca.
– Mamãe está orgulhosa de você não ter deixado ele te tocar – Lúcia fez carinho no nariz de Kaio e ele sorriu.
– Algumas brincadeiras parecem inocentes, mas na verdade são maldosas. Cavalinho, médico, até algumas cócegas em regiões inapropriadas… Vocês são como um tesouro muito precioso. Algumas pessoas veem como são lindos e querem fazer mal. Vocês devem fugir e sempre falar para a mamãe. Eu vou sempre, sempre, defender vocês.
Marcelo chegou pouco tempo depois. O rapaz tinha 18 anos e era enorme como uma porta. Parecia assustador pelo tamanho, mas era um amor.
Ele levou os livros do vestibular e ficou na mesa estudando.
João queria ficar por perto sob o argumento de que vigiaria a casa. Todavia Lúcia o convenceu segundos depois de dizer que precisava dele por perto, pois se sentia mais segura assim.
Therezinha voltaria no dia seguinte e elas iriam à delegacia.
As crianças dormiram ao lado da mãe. Lúcia mal pregou os olhos. Abraçou forte suas crias e agradeceu a Deus por cuidar dos seus meninos. Rezou pedindo por mais proteção.
A mulher enxergou a importância de ter falado com os filhos, de ter demonstrado segurança, caso contrário Kaio poderia ter sido machucado de maneiras que a mãe nem se permitia pensar.
Lúcia passou algumas horas da noite vagando nos “e se…” mas percebeu que o que importava agora era o que faria para ensinar seus filhos mais sobre como se proteger.
Seu tesouro todo estava naquela cama. Faria o necessário para protegê-los.
Nicoly Araújo e Diego Martins
Para saber mais sobre brincadeiras que não são para crianças veja:
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