{"id":3965,"date":"2021-06-10T18:50:35","date_gmt":"2021-06-10T21:50:35","guid":{"rendered":"https:\/\/futurobrilhante.net.br\/?p=3965"},"modified":"2021-06-10T18:51:18","modified_gmt":"2021-06-10T21:51:18","slug":"juro-de-mindinho","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/futurobrilhante.net.br\/2021\/06\/10\/juro-de-mindinho\/","title":{"rendered":"Juro de mindinho"},"content":{"rendered":"\t\t
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Maio era um m\u00eas dif\u00edcil naquela regi\u00e3o. Na verdade, j\u00e1 fazia alguns meses que o inverno amaz\u00f4nico come\u00e7ou e com ele vieram as fortes chuvas. Mas o \u00e1pice torrencial come\u00e7ou na tarde do dia 14 e s\u00f3 teve seu fim na manh\u00e3 do dia seguinte.<\/span><\/p>

Infelizmente, quando o sol raiou, algumas fam\u00edlias carregavam baldes de \u00e1gua para fora de suas casas. Alguns telhados foram arrancados e pessoas tiveram que ir para a casa de vizinhos. O rio ficou t\u00e3o cheio que o n\u00edvel da \u00e1gua subiu at\u00e9 a altura das casas de madeira e destruiu algumas pequenas planta\u00e7\u00f5es familiares, que sobreviviam do que plantavam ali.<\/span><\/p>

Naqueles dias chuvosos a correnteza tamb\u00e9m foi extremamente forte e carregou galhos e sedimentos rio abaixo, o que prejudicou a pesca.<\/span><\/p>

A comunidade sabia muito bem como eram dias assim. J\u00e1 estavam habituados a eles. Mas at\u00e9 mesmo v\u00f3 Therezinha, que orgulhosamente era a terceira pessoa mais velha na comunidade, dizia que n\u00e3o via uma tempestade assim desde os dias de menina. Ribeirinha, que pensava que a av\u00f3 era anci\u00e3 o suficiente, achava que ela relatava os acontecimentos da arca de No\u00e9.<\/span><\/p>

V\u00f3 Therezinha ao ouvir tamanho disparate tratou de repreend\u00ea-la, mas ela mesma n\u00e3o tinha muitos conhecimentos da b\u00edblia para falar daquele assunto com a neta.<\/span><\/p>

O vento forte, que se encarregou de arrancar fora alguns telhados, deixou cinco fam\u00edlias sem condi\u00e7\u00f5es de ficar em casa. Logo a comunidade se reorganizou de maneira impec\u00e1vel para que todos ficassem abrigados e bem alimentados.<\/span><\/p>

Foi assim que Ribeirinha foi parar na casa de sua melhor amiga.<\/span><\/p>

Dona Rita \u00e9 muito velha e vivia sozinha. A casa dela encheu de \u00e1gua at\u00e9 as canelas, mas a V\u00f3 Therezinha disse que ela passou a noite inteira dormindo e s\u00f3 acordou quando a mam\u00e3e foi l\u00e1 ver como ela estava. N\u00e3o sei como ela consegue, Rai. A V\u00f3 Therezinha tem sono leve. Se eu derrubar uma pena no ch\u00e3o ou se a galinha eri\u00e7ar as penas de um jeito diferente ela j\u00e1 \u201carregala [1]<\/strong><\/a>\u201d os olhos e come\u00e7a a inspecionar a casa. Eu estou falando muito? Eu sei que estou. Sua m\u00e3e n\u00e3o vai gostar de nos ouvir fazendo barulho. Mas esse \u00e9 o dia mais incr\u00edvel que eu j\u00e1 vivi. V\u00f3 Therezinha brigaria comigo por falar isso, j\u00e1 que muitas pessoas ficaram sem as casas, mas ela tamb\u00e9m brigaria se eu mentisse e eu estaria mentindo se n\u00e3o falasse que estou muito feliz, afinal eu posso ficar com voc\u00ea aqui por bastante tempo.<\/em> N\u00e3o \u00e9 maravilhoso?<\/em> \u2013 Tagarelou Ribeirinha, mal contendo-se sobre os p\u00e9s. Era vis\u00edvel a energia em seus olhos.<\/span><\/p>

Raiane estava mais quieta que o normal, por\u00e9m Ribeirinha j\u00e1 era el\u00e9trica o suficiente para causar um reboli\u00e7o sem precisar de ajuda.<\/span><\/p>

Eu adorei que vai ficar aqui comigo. Estava me sentindo sozinha esses dias. Tive que voltar para a escolinha, j\u00e1 que os assistentes sociais que vieram aqui disseram que eu deveria. Eu gosto da escolinha. Fico mais tempo por l\u00e1 e quando volto a minha m\u00e3e j\u00e1 saiu para o trabalho. Ela deixa o meu almo\u00e7o pronto e eu fico at\u00e9 tarde s\u00f3 em casa. N\u00e3o, n\u00e3o \u00e9 ruim, eu at\u00e9 que gosto de ficar s\u00f3.<\/em><\/span><\/p>

E assim aquelas duas melhores amigas conversaram durante algumas horas. Depois foram almo\u00e7ar e conversaram durante os intervalos de uma colherada e outra. A m\u00e3e de Rai dizia que era feio falar de boca cheia, mas a tarefa de calar as duas era imposs\u00edvel. Assim que percebeu isso a mulher acabou desistindo e as deixou tagarelando.<\/span><\/p>

Como as crian\u00e7as inquietas que eram, as meninas n\u00e3o conseguiram descansar. Elas n\u00e3o iriam para a escolinha naquele dia, anunciou a m\u00e3e de Rai. Por conta disso as duas acompanhariam a mulher no trabalho.<\/span><\/p>

Raiane insistiu para ficar em casa com Ribeirinha. Disse que preferia assim, mas a amiga n\u00e3o pensava da mesma maneira.<\/span><\/p>

Ah, Rai! Vamos poder ver os cavalos. Talvez at\u00e9 deixem a gente montar. E voc\u00ea disse que recentemente a porca pariu oito leit\u00f5ezinhos. Vamos, vamos, por favor, eu imploro!<\/em><\/span><\/p>

Se Raiane tinha um defeito, era o de nunca falar \u201cn\u00e3o\u201d. Ent\u00e3o foram.<\/span><\/p>

Aquele dia parecia estar sorrindo para elas, disse Ribeirinha com a imagina\u00e7\u00e3o voando alto e grata por V\u00f3 Therezinha n\u00e3o estar ali para lhe dar um merecido serm\u00e3o sobre como ela estava sendo uma menina ego\u00edsta.<\/span><\/p>

O sol brilhava e n\u00e3o se viam nuvens no c\u00e9u q j\u00e1 havia descarregado suas reservas sobre aquela humilde comunidade. A fazenda estava cheia de sons de porcos, cavalos e vacas.<\/span><\/p>

Tudo era vibrante, at\u00e9 o cheiro da grama molhada. Elas foram ver os leit\u00f5es, coisinhas rosas que eram grandes e pesadas para as duas. O caseiro pegou um, o mais mi\u00fado, para que elas segurassem e Ribeirinha sentiu-se nos c\u00e9us. Ele cheirou a garotinha e a encarou com os pequenos olhos pretos. O focinho \u00famido fazia c\u00f3cegas no pesco\u00e7o da menina.<\/span><\/p>

\u00c9 lindo!<\/em> \u2013 e n\u00e3o havia descri\u00e7\u00e3o melhor. \u2013 Ser\u00e1 que eles deixam eu levar? N\u00e3o, n\u00e3o posso. Vou acabar amando ele e depois v\u00f3 Therezinha vai fazer um churrasco do pobrezinho. O senhor pode tirar ele do meu bra\u00e7o? A m\u00e3e dele est\u00e1 me olhando com uma cara raivosa e ela \u00e9 bem maior que eu. Al\u00e9m disso eu n\u00e3o acho que consigo fazer isso eu mesma. J\u00e1 amo esse beb\u00ea como se fosse meu. <\/em><\/span><\/p>

Voc\u00ea \u00e9 uma crian\u00e7a dram\u00e1tica<\/em>. \u2013 falou o caseiro enquanto tirava o leit\u00e3o dos bra\u00e7os de Ribeirinha.<\/span><\/p>

Ela vai achar que isso \u00e9 um elogio<\/em> \u2013 Rai esclareceu. E pela express\u00e3o facial da outra garotinha era bem isso que ela havia pensado.<\/span><\/p>

Em um instante Raiane estava sorrindo. Em outro ela ouviu passos pesados de bota e ficou branca, com a boca entreaberta. \u2013 O que foi? Voc\u00ea parece o Chaves com piripaque.<\/em> \u2013 inquiriu Ribeirinha.<\/span><\/p>

Quer brincar de uma coisa?<\/em> – perguntou Raiane apressadamente. Sua melhor amiga n\u00e3o era boba e entendia como aquilo era estranho, mas decidiu concordar.<\/span><\/p>

De que?<\/em> \u2013 perguntou.<\/span><\/p>

Temos que nos esconder do fazendeiro <\/em>– disse Rai j\u00e1 puxando a amiga pelo bra\u00e7o. \u2013 E da minha m\u00e3e tamb\u00e9m.<\/em> \u2013 Acrescentou.<\/span><\/p>

Em segundos elas estavam correndo para fora do chiqueiro e se esgueirando pelos cantos at\u00e9 o celeiro. Aquele n\u00e3o era um lugar muito bom para se esconder, mas logo que entraram no pequeno lugar, Raiane afastou uma t\u00e1bua e mostrou para a amiga uma brecha na parede de madeira que era grande o suficiente somente para uma crian\u00e7a pequena passar.<\/span><\/p>

Rai passou pela brecha e desapareceu no escuro, Ribeirinha a seguiu sem hesita\u00e7\u00e3o. Acabaram indo para uma esp\u00e9cie de dep\u00f3sito bem pequeno, mas lotado de feno, quem entrasse ali n\u00e3o as veria encostadas na parede e n\u00e3o havia outro meio de atravessar o feno sem passar pelo pequeno buraco na parede, que j\u00e1 estava escondido pela t\u00e1bua de madeira, movida mais uma vez para o lugar correto.\u00a0<\/span><\/p>

– Que lugar \u00e9 esse? – perguntou Ribeirinha. N\u00e3o havia muita luz no local, por\u00e9m as duas ainda conseguiam ver os rostos uma da outra. Raiane colocou um dedo nos l\u00e1bios, pedindo sil\u00eancio. Aquela brincadeira n\u00e3o era divertida.<\/span><\/p>

– Esconderijo, mas voc\u00ea tem que ficar quieta ou v\u00e3o nos descobrir.<\/span><\/p>

Elas ouviram passos pesados, ligeiramente arrastados e apressados.<\/span><\/p>

\u2013 Rai? Voc\u00ea trouxe uma amiguinha? N\u00e3o fique com vergonha. Comprei doces para o lanche, os seus preferidos. – sugeriu uma voz masculina grave. Ribeirinha arqueou as sobrancelhas, preferia ir comer doce ao ficar ali escondida atr\u00e1s daquele feno que a deixava com vontade de espirrar, mas havia urg\u00eancia no olhar de Raiane.<\/span><\/p>

Foi ent\u00e3o que Ribeirinha soube que ela tinha medo dele e ficou triste por sua amiga simplesmente n\u00e3o dizer isso para ela. Mas Rai de fato havia dito, n\u00e3o com palavras, mas com gestos. Toda vez que o fazendeiro aparecia em uma conversa ela ficava nervosa. Odiava ir com a m\u00e3e at\u00e9 o trabalho na fazenda.<\/span><\/p>

Os passos soaram para longe, mas a tens\u00e3o permaneceu por longos minutos. At\u00e9 que ouviram a m\u00e3e de Rai bradar chamando as duas, que teimosamente permaneceram escondidas.<\/span><\/p>

Quando n\u00e3o podiam mais ouvir ningu\u00e9m por perto, as meninas, sentadas no ch\u00e3o, relaxaram. \u2013 Agora voc\u00ea precisa me dizer o que est\u00e1 acontecendo.<\/em> \u2013 Ribeirinha disse, sem mais delongas.<\/span><\/p>

Eu n\u00e3o gosto dele. Ele gosta de me por no colo e fazer… carinho. Mas ele tem uma barba que pinica, m\u00e3os suadas e grudentas. Minha m\u00e3e diz que ele gosta de mim porque eu sou uma crian\u00e7a simples e bondosa, e que eu tenho que ser grata.<\/em><\/span><\/p>

Voc\u00ea deveria falar isso para um adulto.<\/em> \u2013 Sugeriu Ribeirinha.<\/span><\/p>

Ah n\u00e3o! Me prometa que n\u00e3o vai falar nada, por favor. Minha m\u00e3e gosta muito desse emprego e eu realmente n\u00e3o me importo de me esconder no feno.<\/em><\/span><\/p>

Ribeirinha achava aquilo errado. Lembrava bem de sua m\u00e3e falando que ela deveria dizer n\u00e3o a car\u00edcias de adultos que a incomodavam e que deveria falar com ela caso algu\u00e9m insistisse. Por\u00e9m a m\u00e3e de Rai era uma pessoa menos bondosa que L\u00facia, talvez n\u00e3o achasse a mesma coisa. Toda aquela ideia de a amiga permanecer no feno fugindo daquele fazendeiro deixava Ribeirinha incomodada – N\u00e3o sei, Rai. Acho que dever\u00edamos falar com algu\u00e9m, essa pessoa pode falar com ele…<\/em>.<\/span><\/p>

N\u00e3o. Estou decidida. E se voc\u00ea contar para algu\u00e9m eu n\u00e3o vou te perdoar e vou dizer que \u00e9 tudo uma mentira.<\/em> \u2013 Rai estava come\u00e7ando a ficar com os olhos rasos d\u2019\u00e1gua e foi s\u00f3 por isso que Ribeirinha concordou em ficar calada.<\/span><\/p>

Eu prometo que n\u00e3o vou falar nada, mas voc\u00ea tem que prometer que vai dizer n\u00e3o caso ele te ache e queira fazer carinho. E voc\u00ea tamb\u00e9m pode correr para a minha casa e eu vou proteger voc\u00ea.<\/em><\/span><\/p>

As duas uniram os mindinhos e prometeram solenemente. Depois come\u00e7aram a imaginar que estavam se escondendo de um monstro que espreitava l\u00e1 fora, querendo peg\u00e1-las com seus tent\u00e1culos grudentos de polvo. Passaram um bom tempo assim e conversaram mais ainda, imaginando que Rai era uma princesa presa e que Ribeirinha era uma outra princesa que apareceu para salvar a melhor amiga, sem homens nessa hist\u00f3ria.<\/span><\/p>

\u2013 Quem precisa de pr\u00edncipe? Eu sou uma princesa lutadora e n\u00e3o preciso ser homem pra ser boa<\/em>. \u2013 Afirmou em um tom confiante.<\/span><\/p>

Sa\u00edram do esconderijo um bom tempo depois e levaram uma bronca da m\u00e3e de Rai. Mas ao menos o fazendeiro n\u00e3o estava mais l\u00e1. Assim, quando voltaram para casa estava tudo bem e as crian\u00e7as sentiram que tiveram o dia mais divertido de todos.<\/span><\/p>

\u00a0<\/p>

– Nicoly Ara\u00fajo e Diego Martins<\/strong><\/span><\/p>

[1]<\/a> Arregala: verb. Arregalar. Abrir e esbugalhar os olhos.<\/span><\/p>\t\t\t\t\t\t<\/div>\n\t\t\t\t<\/div>\n\t\t\t\t\t<\/div>\n\t\t<\/div>\n\t\t\t\t\t<\/div>\n\t\t<\/section>\n\t\t\t\t<\/div>\n\t\t","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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