Juro de mindinho

Maio era um mês difícil naquela região. Na verdade, já fazia alguns meses que o inverno amazônico começou e com ele vieram as fortes chuvas. Mas o ápice torrencial começou na tarde do dia 14 e só teve seu fim na manhã do dia seguinte.

Infelizmente, quando o sol raiou, algumas famílias carregavam baldes de água para fora de suas casas. Alguns telhados foram arrancados e pessoas tiveram que ir para a casa de vizinhos. O rio ficou tão cheio que o nível da água subiu até a altura das casas de madeira e destruiu algumas pequenas plantações familiares, que sobreviviam do que plantavam ali.

Naqueles dias chuvosos a correnteza também foi extremamente forte e carregou galhos e sedimentos rio abaixo, o que prejudicou a pesca.

A comunidade sabia muito bem como eram dias assim. Já estavam habituados a eles. Mas até mesmo vó Therezinha, que orgulhosamente era a terceira pessoa mais velha na comunidade, dizia que não via uma tempestade assim desde os dias de menina. Ribeirinha, que pensava que a avó era anciã o suficiente, achava que ela relatava os acontecimentos da arca de Noé.

Vó Therezinha ao ouvir tamanho disparate tratou de repreendê-la, mas ela mesma não tinha muitos conhecimentos da bíblia para falar daquele assunto com a neta.

O vento forte, que se encarregou de arrancar fora alguns telhados, deixou cinco famílias sem condições de ficar em casa. Logo a comunidade se reorganizou de maneira impecável para que todos ficassem abrigados e bem alimentados.

Foi assim que Ribeirinha foi parar na casa de sua melhor amiga.

Dona Rita é muito velha e vivia sozinha. A casa dela encheu de água até as canelas, mas a Vó Therezinha disse que ela passou a noite inteira dormindo e só acordou quando a mamãe foi lá ver como ela estava. Não sei como ela consegue, Rai. A Vó Therezinha tem sono leve. Se eu derrubar uma pena no chão ou se a galinha eriçar as penas de um jeito diferente ela já “arregala [1]” os olhos e começa a inspecionar a casa. Eu estou falando muito? Eu sei que estou. Sua mãe não vai gostar de nos ouvir fazendo barulho. Mas esse é o dia mais incrível que eu já vivi. Vó Therezinha brigaria comigo por falar isso, já que muitas pessoas ficaram sem as casas, mas ela também brigaria se eu mentisse e eu estaria mentindo se não falasse que estou muito feliz, afinal eu posso ficar com você aqui por bastante tempo. Não é maravilhoso? – Tagarelou Ribeirinha, mal contendo-se sobre os pés. Era visível a energia em seus olhos.

Raiane estava mais quieta que o normal, porém Ribeirinha já era elétrica o suficiente para causar um reboliço sem precisar de ajuda.

Eu adorei que vai ficar aqui comigo. Estava me sentindo sozinha esses dias. Tive que voltar para a escolinha, já que os assistentes sociais que vieram aqui disseram que eu deveria. Eu gosto da escolinha. Fico mais tempo por lá e quando volto a minha mãe já saiu para o trabalho. Ela deixa o meu almoço pronto e eu fico até tarde só em casa. Não, não é ruim, eu até que gosto de ficar só.

E assim aquelas duas melhores amigas conversaram durante algumas horas. Depois foram almoçar e conversaram durante os intervalos de uma colherada e outra. A mãe de Rai dizia que era feio falar de boca cheia, mas a tarefa de calar as duas era impossível. Assim que percebeu isso a mulher acabou desistindo e as deixou tagarelando.

Como as crianças inquietas que eram, as meninas não conseguiram descansar. Elas não iriam para a escolinha naquele dia, anunciou a mãe de Rai. Por conta disso as duas acompanhariam a mulher no trabalho.

Raiane insistiu para ficar em casa com Ribeirinha. Disse que preferia assim, mas a amiga não pensava da mesma maneira.

Ah, Rai! Vamos poder ver os cavalos. Talvez até deixem a gente montar. E você disse que recentemente a porca pariu oito leitõezinhos. Vamos, vamos, por favor, eu imploro!

Se Raiane tinha um defeito, era o de nunca falar “não”. Então foram.

Aquele dia parecia estar sorrindo para elas, disse Ribeirinha com a imaginação voando alto e grata por Vó Therezinha não estar ali para lhe dar um merecido sermão sobre como ela estava sendo uma menina egoísta.

O sol brilhava e não se viam nuvens no céu q já havia descarregado suas reservas sobre aquela humilde comunidade. A fazenda estava cheia de sons de porcos, cavalos e vacas.

Tudo era vibrante, até o cheiro da grama molhada. Elas foram ver os leitões, coisinhas rosas que eram grandes e pesadas para as duas. O caseiro pegou um, o mais miúdo, para que elas segurassem e Ribeirinha sentiu-se nos céus. Ele cheirou a garotinha e a encarou com os pequenos olhos pretos. O focinho úmido fazia cócegas no pescoço da menina.

É lindo! – e não havia descrição melhor. – Será que eles deixam eu levar? Não, não posso. Vou acabar amando ele e depois vó Therezinha vai fazer um churrasco do pobrezinho. O senhor pode tirar ele do meu braço? A mãe dele está me olhando com uma cara raivosa e ela é bem maior que eu. Além disso eu não acho que consigo fazer isso eu mesma. Já amo esse bebê como se fosse meu.

Você é uma criança dramática. – falou o caseiro enquanto tirava o leitão dos braços de Ribeirinha.

Ela vai achar que isso é um elogio – Rai esclareceu. E pela expressão facial da outra garotinha era bem isso que ela havia pensado.

Em um instante Raiane estava sorrindo. Em outro ela ouviu passos pesados de bota e ficou branca, com a boca entreaberta. – O que foi? Você parece o Chaves com piripaque. – inquiriu Ribeirinha.

Quer brincar de uma coisa? – perguntou Raiane apressadamente. Sua melhor amiga não era boba e entendia como aquilo era estranho, mas decidiu concordar.

De que? – perguntou.

Temos que nos esconder do fazendeiro – disse Rai já puxando a amiga pelo braço. – E da minha mãe também. – Acrescentou.

Em segundos elas estavam correndo para fora do chiqueiro e se esgueirando pelos cantos até o celeiro. Aquele não era um lugar muito bom para se esconder, mas logo que entraram no pequeno lugar, Raiane afastou uma tábua e mostrou para a amiga uma brecha na parede de madeira que era grande o suficiente somente para uma criança pequena passar.

Rai passou pela brecha e desapareceu no escuro, Ribeirinha a seguiu sem hesitação. Acabaram indo para uma espécie de depósito bem pequeno, mas lotado de feno, quem entrasse ali não as veria encostadas na parede e não havia outro meio de atravessar o feno sem passar pelo pequeno buraco na parede, que já estava escondido pela tábua de madeira, movida mais uma vez para o lugar correto. 

– Que lugar é esse? – perguntou Ribeirinha. Não havia muita luz no local, porém as duas ainda conseguiam ver os rostos uma da outra. Raiane colocou um dedo nos lábios, pedindo silêncio. Aquela brincadeira não era divertida.

– Esconderijo, mas você tem que ficar quieta ou vão nos descobrir.

Elas ouviram passos pesados, ligeiramente arrastados e apressados.

– Rai? Você trouxe uma amiguinha? Não fique com vergonha. Comprei doces para o lanche, os seus preferidos. – sugeriu uma voz masculina grave. Ribeirinha arqueou as sobrancelhas, preferia ir comer doce ao ficar ali escondida atrás daquele feno que a deixava com vontade de espirrar, mas havia urgência no olhar de Raiane.

Foi então que Ribeirinha soube que ela tinha medo dele e ficou triste por sua amiga simplesmente não dizer isso para ela. Mas Rai de fato havia dito, não com palavras, mas com gestos. Toda vez que o fazendeiro aparecia em uma conversa ela ficava nervosa. Odiava ir com a mãe até o trabalho na fazenda.

Os passos soaram para longe, mas a tensão permaneceu por longos minutos. Até que ouviram a mãe de Rai bradar chamando as duas, que teimosamente permaneceram escondidas.

Quando não podiam mais ouvir ninguém por perto, as meninas, sentadas no chão, relaxaram. – Agora você precisa me dizer o que está acontecendo. – Ribeirinha disse, sem mais delongas.

Eu não gosto dele. Ele gosta de me por no colo e fazer… carinho. Mas ele tem uma barba que pinica, mãos suadas e grudentas. Minha mãe diz que ele gosta de mim porque eu sou uma criança simples e bondosa, e que eu tenho que ser grata.

Você deveria falar isso para um adulto. – Sugeriu Ribeirinha.

Ah não! Me prometa que não vai falar nada, por favor. Minha mãe gosta muito desse emprego e eu realmente não me importo de me esconder no feno.

Ribeirinha achava aquilo errado. Lembrava bem de sua mãe falando que ela deveria dizer não a carícias de adultos que a incomodavam e que deveria falar com ela caso alguém insistisse. Porém a mãe de Rai era uma pessoa menos bondosa que Lúcia, talvez não achasse a mesma coisa. Toda aquela ideia de a amiga permanecer no feno fugindo daquele fazendeiro deixava Ribeirinha incomodada – Não sei, Rai. Acho que deveríamos falar com alguém, essa pessoa pode falar com ele….

Não. Estou decidida. E se você contar para alguém eu não vou te perdoar e vou dizer que é tudo uma mentira. – Rai estava começando a ficar com os olhos rasos d’água e foi só por isso que Ribeirinha concordou em ficar calada.

Eu prometo que não vou falar nada, mas você tem que prometer que vai dizer não caso ele te ache e queira fazer carinho. E você também pode correr para a minha casa e eu vou proteger você.

As duas uniram os mindinhos e prometeram solenemente. Depois começaram a imaginar que estavam se escondendo de um monstro que espreitava lá fora, querendo pegá-las com seus tentáculos grudentos de polvo. Passaram um bom tempo assim e conversaram mais ainda, imaginando que Rai era uma princesa presa e que Ribeirinha era uma outra princesa que apareceu para salvar a melhor amiga, sem homens nessa história.

Quem precisa de príncipe? Eu sou uma princesa lutadora e não preciso ser homem pra ser boa. – Afirmou em um tom confiante.

Saíram do esconderijo um bom tempo depois e levaram uma bronca da mãe de Rai. Mas ao menos o fazendeiro não estava mais lá. Assim, quando voltaram para casa estava tudo bem e as crianças sentiram que tiveram o dia mais divertido de todos.

 

– Nicoly Araújo e Diego Martins

[1] Arregala: verb. Arregalar. Abrir e esbugalhar os olhos.

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