O visitante

Ribeirinha teve um dia de folga quando a avó decidiu ir com ela e os outros netos até o rio onde as crianças sempre tomavam banho, algumas crianças ainda não tinham permissão para sair de casa sem os pais, mas as coisas aos poucos voltavam ao normal, se       é que um dia poderiam normalizar.

A garotinha, que gostava da companhia da avó, não achava ruim que Therezinha ficasse por perto. Com exceção daquela manhã em que a senhorinha estava especialmente chata.

Primeiro ela implicou com Ribeirinha por subir no pé de manga.

– Desce daí, é perigoso! Ribeiriiiiiinhaaaa! Deixa de ser teimosa, moleca! – berrou Therezinha para todos ouvirem, mas logo depois pegou metade das frutas que a garotinha tinha pego e separou as que não estavam maduras, as preferidas da menina, para comer com sal.

– Mas vó, a senhora briga e depois come? Pode me dar, se quiser vai lá buscar. – Ribeirinha retrucou com Therezinha, que levantou os olhos e fez uma careta.

– Como que é? – perguntou fingindo incredulidade.

– Nada não, vozinha. Só perguntei se a senhora quer que eu pegue mais.

Já no rio, Ribeirinha tirou o vestido e pulou de calcinha. Therezinha descascava a manga e vez ou outra assobiava, dizia ela que era pra chamar o vento.

Então implicou mais uma vez com a neta por nadar para muito longe da margem. Ribeirinha não gostava que duvidassem das suas habilidades de natação, pois ela era a melhor nadadora das crianças da sua idade e muito melhor que alguns adultos.

– Tem que dar exemplo, menina! Olha o Kaio indo atrás… Voltem aqui pra “beira” seus teimosos!

Mesmo assim teve que sair do rio quando a avó mandou, se despediu dos colegas e foi para casa levando Kaio nos braços por parte do caminho. Ele era muito pesado, mas amava um colo e era mimado. Bastava piscar duas vezes com os grandes olhos castanhos que todos caíam de amores.

Quando chegaram em casa viram um homem alto, de meia idade, sentado na cadeira de balanço da vó Therezinha enquanto descascava uma mexerica.

Therezinha tratou logo de saber quem era e Lúcia logo saiu de casa para falar que era o amigo de Edmundo, seu irmão mais velho.

Acontece que Edmundo não parava muito em casa, era desbandado pro lado errado e se metia em negócios ilícitos até que foi preso. Depois do presídio foi trabalhar como pedreiro na cidade.

Ele havia falado com Therezinha uma semana antes sobre deixar que o homem passasse um tempo na casa até que conseguisse um emprego.

“amigo de confiança” era o que dizia.

– O Edmundo que me mandou, dona Therezinha – Disse com um sorriso simpático e depois olhou para as crianças. Algo no olhar dele incomodou a idosa que mandou Ribeirinha ir pra dentro dar banho em Kaio, inspecionar se João se lava direito e se vestir.

Ribeirinha queria ouvir a conversa, mas sabia bem que a avó não estava em um bom clima então fez o que Therezinha mandou.

– Entra no tanque – Disse Ribeirinha para o irmão mais novo e Kaio levantou os braços para que a garota o ajudasse a entrar. – E você pode já ir se molhando.

– Não sei pra que banhar se eu acabei de chegar do rio – rebateu João, que só chegava perto da água do rio e da caneca que bebia.

– Porque você tá cheio de terra e todo cinzento.

O garoto discutiu um pouco até ceder. Quanto a Kaio, Ribeirinha praticava o que a mãe a ensinou já fazia alguns dias.

– Levanta o bracinho, posso lavar aqui? – Kaio levantou o braço e a irmã lavou, ele disse que fazia cócegas e então Ribeirinha parou.

– Se você não gosta eu vou parar.

Ribeirinha lembrou-se da mãe ensinando: – Você precisa sempre pedir permissão, ele precisa saber que o corpinho é dele e só podem tocar se ele deixar, e se incomodar o Kaio você deve parar. Tudo bem?  

– Agora você lava o pio-pio e o bum bum. – Ribeirinha dava instruções sobre a limpeza para o irmão. Kaio parecia muito contente no final, quase como se fosse um adulto que já sabia tomar banho sozinho.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Lúcia fez o jantar e todos se sentaram à mesa, incluindo o estranho. Seu nome era Marcos, mas fora isso a família não tinha muitas outras informações.

O homem parecia educado e muito engraçado, contando histórias sobre os bichos que ele viu quando saía para pescar e dormia na floresta. – Eu estava deitado na rede e ouvi ela assobiando no meu ouvido, juro por Deus que pensei ser a Matinta Perera.

Depois das histórias as crianças não queriam ir dormir, mas Therezinha insistiu que já estava tarde e que no outro dia teriam de ir para a escola.

Ela pôs as crianças na cama e verificou se estavam bem cobertas.

– Nós temos uma visita. Ele não vai ficar por muito tempo, mas mesmo assim vocês vão seguir umas regras enquanto ele por aqui.

Ribeirinha prestou atenção na avó.

– Nada de andar só de calcinha ou cueca, principalmente porque eu não conheço bem esse homem e não quero que ele veja vocês assim. Mas isso também vale pra toda hora. Nada de banho de rio ou de sair de casa só com roupa íntima.

– Mas por quê? A gente sempre sai assim, o Kaio até fica pelado – Argumentou João, o irmão do meio.

– A gente precisa ter cuidado com vocês. Tem que ser zeloso com o corpo, sem sair mostrando pra qualquer um, porque é algo muito íntimo. Então agora é regra: roupas.

– Tudo bem, vovó. – Ribeirinha sorriu e bocejou.

– Ele vai ficar na casa da Neuza enquanto ela e a Maria estão na cidade. Boa noite.

Vó Therezinha não era uma pessoa muito afetuosa. Ribeirinha recebia abraços e eventuais beijos, mas não lembrava de ter ouvido muitos “eu te amo” da avó.

A avó de Ribeirinha fora criada em uma família fechada, no casamento foi que aprendeu mais algumas coisas sobre afeição, em geral não era uma pessoa de muitas palavras para manifestar amor. O afeto era demonstrado na preocupação com a alimentação, a saúde e o bem-estar dos filhos e netos.

Therezinha se lembrou da neta que ainda enfrentava o trauma, como pensou que sua Mariazinha perdera a essência de criança. Jamais imaginaria que o velho vizinho, que conhecia já fazia 10 anos, poderia cometer tal atrocidade.

A senhorinha aprendeu, do pior jeito, a manter os olhos abertos e a mente afiada, pois essas pessoas horríveis não tinham um rosto desfigurado ou aparência maligna. Na verdade, se disfarçavam de amigos sorridentes e vizinhos bondosos.

Therezinha faria de tudo ao seu alcance para filtrar os tipos de pessoa que conviveriam com as crianças.

Ajoelhou-se antes de dormir, como fazia toda a noite, e orou por cada familiar. Therezinha pediu a Deus para fazer aquilo que não estava ao seu alcance, aquilo que não poderia, nem com todo o cuidado do mundo, prever.

No fim, pediu para que os netos sempre a olhassem com carinho e que enxergassem o amor dela naquelas atitudes, pois não era boa em palavras ou gestos. Na verdade, era uma mulher furiosa, mas era daquela fúria que iria usar para proteger a família.

 

– Nicoly Araújo e Diego Martins

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