O diário

Ribeirinha ouvia a prima reclamar pela centésima vez.

– quantas vezes já te falei pra não mexer nas minhas coisas, pestinha?! – Maria estava transtornada.

Mas não era sua culpa, o diário estava sob a cama e no mesmo lugar estava a boneca de pano que a vó Therezinha tinha costurado especialmente para ela.

Ribeirinha deveria confessar que já estava preocupada com a prima, Maria era faladeira e feliz, tinha só dez anos, mas amava brincar com as primas mais novas e costurar roupinhas para as bonecas, bem como ouvir as fofocas da vó Therezinha.

Nas últimas semanas a garota, que não conseguia manter a boca fechada, já não falava nada, não queria mais brincar e ficava muito agressiva quando a prima a perguntava o que estava acontecendo. Ribeirinha andava assustada com a reação da prima e o que tinha visto no diário parecia ser assunto sério demais para ficar escondido debaixo da cama, além de ser a razão do mal-estar de Maria.

A mãe de Ribeirinha logo tomou a frente da conversa.

– O que a menina fez não foi certo. Mas esse não é o assunto. O que aconteceu é muito sério.

Ribeirinha era criança esperta demais para sua idade, mas mesmo assim não havia entendido a seriedade do que estava no diário. Haviam palavras como vergonha e nudez. Tudo a deixou tão confusa que resolveu mostrar para a mãe, que mostrou para a vó Therezinha.

O diário parecia contar uma história horrível. A prima chorava dizendo que a criança era uma peste fofoqueira e que não deveria mexer nas suas coisas.

Já a vozinha olhava para a neta chorosa com raiva nos olhos, mas não estava direcionada à criança a sua frente. Vó Therezinha aninhou a menina no colo até parar de chorar, como se conhecesse a sensação.

Maria parecia não entender a situação. Ela olhava para a avó e dizia que ficou com vergonha, que não deveria ter aceitado os doces do moço.

– shh…- dizia vó Therezinha. Ela parecia triste até os ossos, mas mantinha a postura para apoiar a criança – Eu “tô” com você, mas precisamos contar isso pra a polícia. Esse infeliz tem que ser preso! A gente não pode deixar acontecer outra vez. – vó Therezinha disse calma e decidida como uma pedra. Maria chorava tanto que tremia, mas ela e a avó saíram.

Ribeirinha, por sua vez, não entendia nada, mas a sua mãe sentou ao seu lado e segurou as suas mãos.

Lúcia tinha os dedos frios e suados. Segurava entre eles um dos seus bens mais valiosos, sua pequena Ribeirinha. A mulher não parava de pensar que se sua irmã tivesse alertado Maria sobre os perigos, talvez a criança não tivesse passado por algo tão terrível assim.

Não, não deixaria que isso acontecesse com a sua menina. Lúcia estava disposta a explicar sobre tudo, sem nenhuma vergonha, se isso fosse manter sua pequena a salvo.

– Sua prima… Mariazinha… ela foi pra casa de uma amiga, o parente dessa garota ofereceu umas balas pras meninas se elas sentassem no colo dele, a amiguinha de Maria disse não, mas sua prima não viu maldade – explicou Lúcia, com cautela.

– O que ele fez mainha? – perguntou assustada. Sua mãe parou para pensar um pouco então disse com calma.

– Toda pessoa tem o seu corpinho e o ele tem lugares que só podem ser tocados com permissão. Eles são chamados partes íntimas – Ribeirinha via a dificuldade da mãe em explicar, mas se sentiu grata pela tentativa. – Uma pessoa ruim fez isso com a sua prima, ele tocou nas partes dela; isso não pode, se chama estupro de vulnerável, por isso a vó Therezinha levou ela pra polícia.

– Polícia? – perguntou perplexa pela seriedade.

– Sim. É muito sério isso, Ribeirinha. Você fez certo em mostrar pra nós. Se alguém algum dia tentar fazer isso com você, tu tens que fugir e contar pra mim ou pra tua avó. Tá? Filha, tu não podes aceitar nada de estranhos, não pode deixar que eles toquem em você. Essas pessoas são más. Elas não querem nada de bom.

– Crianças como você não tem idade pra serem tocadas. Não podem ser tocadas de jeito nenhum desse jeito.

Ribeirinha anuiu com a cabeça. – Por quê a Maria não falou pra mãe dela, então?

– Ela tava com muito medo e vergonha, achava que era culpa dela por ter aceitado os bombons. E sabes como é tua tia Neuza. Ela se estressa logo e tem problema de pressão… Maria queria poupar a mãe.

– Mas não era culpa dela! O homem era mau, né mainha?

– Muito mal – Lúcia apertou mais a mão da filha – Nós somos melhores amigas, Ribeirinha. Tu tem que me contar tudo, não pode querer me aliviar. Eu vou sempre defender você.

Ribeirinha pensou um pouco e perguntou para Lúcia como ela sabia tanto sobre isso e se já havia acontecido com ela.

– A mãe te explica melhor depois, mas aqui na região acontece muito. Já acompanhei muita amiga minha na delegacia com as filha.

Ribeirinha ficou muito triste pela prima. Então ela e a mãe fizeram um caldo de galinha pra quando ela chegasse. A garota foi alertada a não fazer muitas perguntas e a ficar sempre do lado da prima dando apoio naquele momento difícil.

No fim do dia, quando Ribeirinha deitou do lado de Maria, a família estava toda reunida no quartinho da casa, não só porque era o único lugar que tinham para dormir, mas porque queriam estar todos lá pela criança violentada.

– Minha mãe não pode saber, ela vai ter um piripaque – Maria começou, mas Lúcia a interrompeu.

– Não é um caminho fácil, filha. Mas eu e a tua avó estamos aqui, sua mãe te ama e vai te defender a todo custo.

– Mas se eu não tivesse aceitado os bombons…

Ribeirinha a impediu de continuar com aquele pensamento – A culpa não é sua. Esse homem é malvado! A polícia vai pegar ele ou a vó Therezinha pega.

Lúcia sorriu brevemente para a filha. – Não pensa muito nisso. Vamo viver um dia de cada vez. Amanhã será outro dia e vamo enfrentar ele juntas.

A prima de Ribeirinha adormeceu e vez ou outra suspirava à noite, mas parecia mais tranquila do que na madrugada anterior. A garotinha descobriu que em situações terríveis como aquela o melhor que se pode fazer como família é prestar atenção aos sinais, confiar uns nos outros e dar apoio em todos os momentos necessários.

– Nicoly Araújo e Diego Martins

 

Notas nossas:

“Estupro de vulnerável:

Artigo 217-A, Código Penal: Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:  

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

Fique atento aos sinais, denuncie, apoie seu filho e explique à ele sobre as partes íntimas.

Aprenda com a Ribeirinha e fique ligado nas próximas aventuras da garotinha.

Rolar para cima
Pular para o conteúdo